teatro
Na cabeça de Adília Lopes
"Estar em Casa" é a mais recente criação de Ricardo Neves-Neves
O humor cáustico e imprevisto, e a originalidade com que retratou a melancolia do quotidiano, fizeram dela referência maior da poesia portuguesa das últimas décadas. Agora, a sua obra é evocada em Estar em Casa, o mais recente espetáculo de Ricardo Neves-Neves, com Sílvia Filipe como cicerone numa viagem exuberante pela surpreendente cabeça de Adília Lopes.
Quis o destino, seja lá o que isso for, que Adília Lopes, falecida há um ano, não vivesse para assistir ao que Ricardo Neves-Neves e o Teatro do Eléctrico fizeram com a sua poesia e muitos dos textos em prosa que espalhou avulsamente por livros, revistas e jornais, nomeadamente no Público, onde assinou, a exemplo, as Crónicas da vaca fria. Por todos os motivos, uma infelicidade, até porque acreditamos que Adília ficaria encantada por assistir ao modo como Sílvia Filipe, “o veículo condutor” das suas palavras, encarna a persona da poeta (Adília Lopes era o pseudónimo literário de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira, como por várias vezes fez questão de lembrar nas raras aparições públicas). Como refere Neves-Neves, a atriz “faz-se luz, posicionando-se no olho do furacão, rodeada de todo um cabaret de música, ilustração e tanto mais do que acontece à sua volta” no palco.
Resgatando o título ao livro de poemas, particularmente íntimos e de cariz autobiográfico, dado à estampa em 2018, Estar em Casa é o resultado de um projeto pensado desde 2021 pelo autor e encenador com a atriz Sílvia Filipe e, na altura, com o compositor Martim Sousa Tavares que, por impossibilidade de agenda, acabaria dando lugar ao músico Simão Bárcia. Conta Ricardo que, para construir esta dramaturgia – que até “pode dar a sensação de ser uma espécie de percurso de vida” –, foi preciso embrenhar-se em “milhares de textos e poemas que, como peças de um puzzle, foi necessário descobrir e montar”. Como faz questão de lembrar Sílvia Filipe, como “não são textos teatrais, existiam muitos caminhos possíveis” para viajar na cabeça de Adília Lopes. Este espetáculo é um desses.

Esta viagem interior começa, precisamente, com temáticas muito caras a Neves-Neves, como o imaginário das histórias para a infância. Da Gata Borralheira que dorme com o Príncipe, e deixa perdido o soutien no leito real, às heroínas perversas da Condessa de Ségur, Adília “dá a muitas dessas personagens dos contos infantis uma vida após o ‘felizes para sempre’, retirando-lhes a inocência. Isso é uma coisa que também eu gosto muito de fazer”, assinala o autor e encenador.
Neves-Neves reconhece mesmo algum paralelismo de imaginários que, certamente, está na génese deste amor antigo pela obra da poeta. “Adília parte do lado mais infantil para a perversidade com qualquer coisa de amargo que, depois, se vai transformando em delicodoce, mantendo sempre uma certa ingenuidade e humor”, sublinha.
Através das ilustrações de Inês Silva, Estar em Casa oferece todo “um lado fantasioso” às metáforas de Adília, dando a Sílvia Filipe a contracena perfeita para fazer a plateia entrar naquele “quarto interior, sem janelas” onde a poeta dizia ter escrito a maior parte dos seus textos. “As ilustrações animadas de gatos perseguindo osgas e baratas permitem dar a imagem das ideias a acontecer”, explica Neves-Neves. Tal como a medusa, animal que faz o seu veneno parecer um choque elétrico à semelhança da imagem que temos das sinapses a ligar os neurónios no cérebro. “Por Adília criar muitos jogos de palavras”, o encenador fez corresponder a medusa que dança à volta da poeta “à Musa que ela dizia sussurrar-lhe ideias ao ouvido”.

Barroco como Adília dizia ser, poético como a sua obra e, apesar do palco quase sempre vazio, cheio de minudências e outras coisas a acontecer (porque, confessava a poeta, “tenho horror ao vazio”), Estou em Casa é um musical sobre a mulher e o processo criativo, inteiramente construído com a obra que deixou. Aliás, Sílvia Filipe esclarece que a sua Adília resulta de uma criação que parte “de dentro para fora”, ou não fosse a poesia dela tão íntima e também tão melancólica, que traduz na interpretação “cada palavra que escreveu, como se elas se entranhassem”.
Além da atriz, em palco está o músico Simão Bárcia, também ele responsável pela música e as canções, com Maia Balduz. Estar em Casa conta com cenografia de Eric da Costa, figurinos de Rafaela Mapril, desenho de luz de Cristina Piedade, sonoplastia de Sérgio Delgado e video mapping de Eduardo Cunha. Depois da estreia em Loulé, o espetáculo prossegue carreira em Lisboa, no Teatro Variedades, de 27 de novembro a 11 de janeiro do próximo ano.