exposição
A arte como inquietação de vida
A Coleção José Carlos Santana Pinto no MACAM
A partir de 22 de novembro, o MACAM inaugura uma nova etapa na sua missão enquanto The House of Private Collections (A Casa das Coleções Privadas). Pela primeira vez, o museu apresenta ao público uma coleção privada convidada: a de José Carlos Santana Pinto, reunida ao longo de mais de quatro décadas e apresentada sob o título Entre a Palavra e o Silêncio, com curadoria de Adelaide Ginga.
Instalada na Galeria 3, a exposição Entre a Palavra e o Silêncio reúne cerca de 70 obras de artistas portugueses e internacionais, entre eles On Kawara, Dora García, Alfredo Jaar, Pedro Cabrita Reis, Carla Filipe e João Onofre. Uma seleção que, como destaca Adelaide Ginga, “revela uma transversalidade muito sediada num gosto próprio que se liga diretamente ao minimalismo e ao conceptual”.
A coleção de Santana Pinto distingue-se pela relação íntima e contínua que o colecionador estabeleceu com os artistas e pelas escolhas guiadas por rigor e investigação. Como afirma a curadora, trata-se de “uma coleção que foi desenvolvida na relação direta com os artistas, com a compra junto dos artistas, com o acompanhamento da produção e da nova produção”. Ao longo do tempo, essa proximidade deu origem a núcleos autorais consistentes: “há, por exemplo, vários Onofres, há várias outras obras de artistas de relevo, que se repetem”, observa ao sublinhar a coerência interna do acervo.
O eixo que estrutura a exposição – e a própria coleção – é o diálogo entre palavra, número e código, que convoca o visitante a uma leitura mais exigente. “É uma coleção que, para um visitante, é um bocadinho mais difícil, menos literal”, explica Ginga. “As mensagens conceptuais não são óbvias, mas esse é precisamente o seu estímulo: uma arte que nos faz pensar, que nos interpela, que nos coloca questões.”
Essa dimensão reflexiva encontra eco na visão do colecionador sobre o papel da arte. José Carlos Santana Pinto partilha que gosta de provocar. “Costumo dizer que a arte é inútil [risos]. É uma brincadeira clássica e provocatória que deixa as pessoas menos acomodadas em relação à arte muito escandalizadas”. Para ele, a importância da arte é vital: “seria uma pessoa diferente se não gostasse de arte contemporânea. É uma questão de vida, quase”. E, acrescenta ainda em registo cúmplice: “até o Andy Warhol dizia que os artistas fazem coisas que as pessoas não precisam – e é verdade”. Essa noção de utilidade paradoxal – ou da liberdade que nasce da inutilidade – reforça o carácter inquieto e interrogativo que atravessa toda a coleção. Não por acaso, esta é também uma ocasião marcante para o colecionador: “é a primeira vez que apresento a minha coleção ao público em Lisboa”.

Um dos aspetos mais singulares desta coleção é a forma como foi vivida no quotidiano. Muitas das obras estiveram instaladas na casa do colecionador durante anos, convivendo diretamente com ele. Como recorda a curadora: “é de facto uma tipologia de coleção muito vivida”, marcada por uma dinâmica contínua de presença, empréstimo, rotação e redescoberta. Para o colecionador, esse contacto direto é essencial – e a exposição permite-lhe também revisitar obras que, por razões de escala ou montagem, estiveram guardadas em armazém: “é uma oportunidade para voltar a conviver com elas”.
A coleção MACAM e o diálogo com outras coleções
Com Entre a Palavra e o Silêncio, o MACAM inicia um novo ciclo de colaborações com colecionadores privados, ampliando a sua missão de dar visibilidade a acervos sem espaço público de apresentação e reforçando o seu papel enquanto plataforma de encontro entre colecionadores, artistas e públicos. A exposição, patente até 1 de junho de 2026, é uma oportunidade rara de entrar no universo de um colecionador cuja trajetória – cosmopolita, contínua e profundamente curiosa – fez emergir um acervo singular na paisagem da arte contemporânea.

No mesmo dia, mas na Galeria 4, é inaugurada também a exposição O eu como múltiplo, a terceira exposição temporária da Coleção MACAM, que conta com a curadoria de Carolina Quintela. Reunindo um conjunto de obras de artistas portugueses e internacionais que exploram a construção da identidade como processo contínuo, fluido e plural, a mostra está organizada entre a figuração e o imaginário e propõe um percurso onde o eu se revela como espaço em permanente transformação – feito de gestos, imagens e memórias que se sobrepõem e se desdobram.
Como refere a curadora, a intenção foi “tratar de uma reflexão em torno da identidade, da construção de identidade e da manifestação do eu”, entendendo que esta “é plural, é múltipla e é fluida, amplamente influenciada pelo contexto social, económico, a língua que falamos, o país em que vivemos”. Assim, a exposição articula o visível e o invisível, o ser e o tornar-se, transformando a arte num território onde corpo, consciência e memória se interrogam mutuamente.
Apresentando obras de diferentes gerações – dos anos 1970 até peças realizadas em 2025 – o projeto evidencia a vitalidade de uma coleção em permanente atualização. “É muito curioso dizer que existem algumas obras de 2025 nesta exposição”, nota Quintela, sublinhando a presença de artistas jovens ao lado de nomes consagrados como Ana Vieira, Helena Almeida, Horácio Frutuoso, John Baldessari, José Pedro Croft, Juan Muñoz, Júlia Ventura, Vik Muniz ou Yu Nishimura. Essa amplitude temporal e estética reforça a ideia de identidade como metamorfose, uma construção sempre inacabada. Como conclui a curadora, as obras reunidas “ajudam-nos a refletir sobre estas questões da construção de identidade, mas também de outras questões que se interligam de alguma forma”, abrindo espaço para múltiplas formas de ser e sentir o mundo.