teatro
Apologia da agressividade passiva
"O Senhor Paul", de Tankred Dorst, no Teatro Aberto

A abrir a temporada, e no ano em que se assinala o centenário do nascimento de Tankred Dorst, um dos maiores dramaturgos alemães da segunda metade do século XX, o Teatro Aberto regressa ao teatro do autor de Fernando Krapp escreveu-me esta carta. Em O Senhor Paul, um velho e ocioso homem, interpretado por Miguel Loureiro, resiste aos intentos do novo senhorio usando uma estratégia desconcertante.
A princípio, O Senhor Paul, de Tankred Dorst, até parece uma comédia de costumes.
Deitado num sofá sovado, rodeado de livros poeirentos e almofadas puídas, com um vetusto piano vertical a servir de base para um fogão elétrico, apresenta-se o senhor Paul. Velho e pesado, dele se escuta, num breve monólogo, uma ode às virtudes da existência letárgica. É então que a irmã, Luise, o interrompe, anunciando que vai à opera com bilhete oferecido, a uma récita de Aida. Na panela fumegante sobre o bico do fogão, há esparguete acabado de cozer para o jantar do senhor Paul, assim informa a irmã.
Surge então Helm, o novo proprietário do imóvel onde vivem Paul e Luise. O jovem acaba de herdar aquela velha e desativada fábrica de sabão e tem novos planos para o espaço. Pacientemente, o recém proprietário procura de Paul uma resposta à carta que enviara, onde explicava o seu projeto de negócio e a necessidade de os irmãos abandonarem o imóvel. Contudo, Paul prefere responder, a partir do assento do seu sofá, com rebuscadas evasivas, como se desconhecesse ou não entendesse as intenções do proprietário.
Com a chegada da histriónica namorada de Helm, da menina Anita (com quem Paul tem uma relação de vincada promiscuidade) e de um investidor imobiliário, instala-se a confusão, algo inesperada, é certo, mas muito propícia à estratégia do inquilino.
A paciência de Helm começa a esgotar-se quando percebe que Paul tem na sua posse a carta e que a leu. Mas, nesse momento, talvez seja já demasiado tarde para escapar à astuta teia tecida pelo aparentemente passivo senhor Paul.
Será a partir deste momento que a aparente comédia de costumes começa a ganhar forma de “uma fábula”, como aponta o encenador Álvaro Correia. Por isso, “embora assim pareça no início, não se pode dizer que O Senhor Paul seja, de todo, uma peça realista”.
Um texto desafiante e uns toques de magia
Acabou por ser uma escolha natural para o Teatro Aberto abrir a atual temporada com O Senhor Paul para, assim, assinalar o centenário do nascimento de Tankred Dorst (1925-2017), um dos mais importantes dramaturgos alemães da segunda metade do século XX. “Era um desejo antigo do Teatro Aberto fazer esta peça, que nunca havia sido encenada em Portugal”, sublinha Álvaro Correia. O Senhor Paul é um regresso da companhia de João Lourenço e Vera San Payo de Lemos ao autor de Fernando Krapp escreveu-me esta carta, peça que o Teatro Aberto produziu em 1997, com um elenco onde pontuavam, entre outros, Alexandra Lencastre, Rogério Samora e João Perry.
“Fazer este espetáculo tinha vários atrativos, como a ideia da imobilidade que vai conduzir ao caos ou as múltiplas camadas que acabam por torná-la tão ambígua”, conta o encenador dando como exemplo a relação de duplicidade que se vai estabelecendo entre o velho Paul e Helm. “Depois, havia um conjunto de desafios cénicos muito complicados de concretizar. Tão complicados que só os resolvemos com a ajuda de um jovem mágico”, confessa.
Sobre a peça, muito se disse e escreveu na altura da estreia. O Senhor Paul subiu ao palco em 1994, coescrita por Dorst com a sua colaboradora e companheira Ursula Ehler, “e muitos viram ali uma reação à reunificação da Alemanha”, com o avanço do capitalismo sobre a débil economia do leste. Hoje, esta perspetiva do homem que está sob a ameaça de despejo e procura resistir, poderia ser “uma história sobre a especulação imobiliária dos nossos dias” e, acrscentamos, no nosso bairro, na nossa cidade.
Porém, Dorst tinha uma explicação diferente, embora percebesse que a vissem como a história de “alguém [que] herdou uma fábrica e quer abrir uma lavandaria – o senhor Paul tem de sair, mas o senhor Paul fica”, naquele contexto das duas “Alemanhas”, logo após a queda do muro de Berlim. Segundo Correia, o autor remetia a figura do senhor Paul para os anos 50 do século passado, época do milagre económico do pós-guerra.
“Aquele personagem baseava-se num vizinho de Dorst que, quando a porta de sua casa se abria, ele via imóvel, recostado no sofá, rodeado de livros. Essa figura, conta [o autor] numa entrevista, repugnava-o, porque a sua mãe dizia que ele poderia ficar assim um dia. Mas, simultaneamente, essa figura, imóvel, culta, atraia-o”, conta o encenador. “Ao mesmo tempo”, acrescenta, “Dorst inspirou-se na lenda de São Cristóvão, o homem forte e grande que transportava às costas pessoas de uma margem para a outra de um rio, e num pequeno conto dos Irmãos Grimm acerca de uma criança perpetuamente imóvel sobre uma pedra e que ninguém é capaz de remover.”
Para lá das múltiplas leituras, O Senhor Paul é um texto desconcertante e surpreendente que, em boa hora, o Teatro Aberto revela entre nós. Para além de Miguel Loureiro no papel de Paul, e de José Pimentão no do herdeiro Helm, o espetáculo conta com uma notável galeria de secundários abrilhantada pelos atores Maria José Paschoal, Lia Carvalho, Iris Cañamero e Carlos Malvarez. Em cena na Sala Azul, até 9 de novembro.