Quatro ‘boys’ muito machos

"King Size", de Sónia Baptista, nos Jardins do Bombarda

Quatro ‘boys’ muito machos

Através do burlesco dos shows drag king, Sónia Baptista, acompanhada pelas performers Crista Alfaiate, Joana Levi e Maria Abrantes, desconstrói sem apelo nem agravo, mas com um irresistível humor, os códigos de construção da masculinidade. Depois da estreia no festival DDD - Dias da Dança, King Size chega à Sala Estúdio Valentim de Barros a 6 de junho.

Será que deus, GOD, é um poodle, DOG? Digamos que, em King Size, esta espécie canina, normalmente efeminada e pouco consentânea com os traços associados a uma masculinidade normativa apresenta-se, entre portais de néon, fumos e hologramas, como tal. Cabe-lhe, nos primeiros minutos da peça, proferir em off (e em inglês) um discurso virulento e crítico sobre o patriarcado e todas as suas emanações violentas inscritas no sistema capitalista.

DOG/GOD é pois incisivo e objetivo quando anuncia um “despertar queer”, capaz de superar os binários de género masculino/ feminino, e apontar à transformação. Eis quando entram em cena quatro performers que, através de um exercício de burlesco, ironia e artifício, ou assumidamente “camp”, para usar o conceito citado pela criadora Sónia Baptista, vão desafiar os códigos de construção da masculinidade.

“Já há muito tempo que pretendia explorar o drag king, até a um nível lúdico”, conta Sónia. Contudo, “a dado momento, percebi que era interessante questionar a performatividade da masculinidade, explorando o modo como o comportamento dito ‘normal’ é encenado e, desse modo, explorar a construção performativa do macho através do drag, do camp.”

Entre a leitura de estudos de género e alguma filosofia queer, a coreógrafa embrenhou-se na cultura pop, percorrendo desde os concursos de Mr. World aos memes que pululam pela Internet. “Como já tinha abordado o tema da masculinidade tóxica em Dykes on Ice [peça de 2024], aqui quis fazer uma coisa diferente. Embora tenha mergulhado nalguma ‘manosfera’ e tropeçado em discursos mais extremados que, pelos nossos dias, vão sendo cada vez mais frequentes, King Size é uma peça que se situa ali num espaço temporal entre os anos 70 e o início dos 90 [do século XX]. Recorri até a antigos anúncios de after shave, e o espaço cénico remete para aquelas igrejas com néon colorido que associamos à Las Vegas desse tempo.”

Para construir quatro “boys” muito machos, a braços com bolas de futebol, alteres e carradas de testosterona transbordando dos slips, Sónia, Crista Alfaiate, Joana Levi e Maria Abrantes frequentaram workshops drag king/queen, onde exploraram da “make up mais construída” ao “lip sync e a todo um código dos shows drag que nenhuma de nós alguma vez havia experimentado”. Através do excesso e até do histrionismo quase sempre muito presente neste tipo de shows, aqui a encenação da masculinidade procura também questionar o que é isto da performance de género no teatro. Mas, como vem sendo característico das criações de Sónia Baptista, fá-lo com humor, “ferramenta de trabalho sempre muito importante para falar de questões difíceis, de questões mais sérias”, como evidencia o já referido discurso de DOG/GOD poodle.

E é, ironia das ironias, para culminar num estado divino de masculinidade que tudo se conclui, com a “poodelização” do quarteto de machos. Ao som dos Europe, e desse hit feito por poddle rockers chamado The Final Countdown que arrasou os tops de vendas de discos há quase 40 anos.

Depois da estreia no Festival DDD, no Porto – muito perturbada pelos efeitos do “apagão”, como confessa Sónia Baptista -, King Size chega agora à Sala Estúdio Valentim de Barros, nos Jardins do Bombarda, permanecendo em cena até 15 de junho. O espetáculo é falado em inglês e português, com legendagem.