teatro
Traje de gala para o mundo imperfeito
"Dressing Room", de Lígia Soares, na Escola do Largo
Em Dressing Room, a artista entra em cena envergando um vestido que terá custado grande parte do valor orçamentado para o espetáculo. Simultaneamente, um luxo e uma excentricidade que Lígia Soares veste em palco para expor com ironia muitas das contradições deste mundo imperfeito.
O magnífico vestido de gala assinado pelo ateliê Alves/Gonçalves que Lígia Soares usa no seu mais recente solo custou, assegura a própria, 20.695 euros. Com todo o dinheiro disponível para este projeto artístico investido no luxuoso figurino, não é de surpreender que a artista esteja obrigada a ter à sua volta todo o equipamento habitualmente operado pela equipa técnica. No caso, Lígia está em cena rodeada por consolas que controlam a luz e o som, por pés de microfone e tripés e por fios e extensões que ligam todo esse material à corrente elétrica.
O vestido que enverga começa por contrastar o luxo com o espaço em bruto, um lugar de despojamento que não está, de todo, distante daquele que é, segundo a criadora, o cenário atual do setor da cultura em Portugal. Venha, então, a provocação: como é que, perante a precariedade e a dependência de dinheiros públicos do sector, a autora e intérprete se pode apresentar em palco vestida deste modo?
Lígia começa por responder à contradição logo no início da peça, apontando o vestido como “perfeito para levar a uma gala de prémios, no caso de o espetáculo vir a ser nomeado”. Evidentemente, não deixa de ser quase uma excentricidade relacionar com a cultura uma imagem glamorosa como aquela que se testemunha anualmente nas galas de prémios que passam na televisão. “Há neste lado da visibilidade associada à criação artística um potencial dilema, uma contradição que para mim não está resolvida”, explica. Nessas galas, “há toda uma ideia de espetáculo” que relaciona os artistas “ao glamour, ao privilégio e às classes altas. São a representação de uma comunidade que reflete uma imagem acima da sua realidade económica e social, entrando mesmo em contradição com o seu próprio discurso enquanto artistas”.

Assumindo ter “uma vida muito pouco glamorosa”, e duvidar convictamente de algum dia vir a ser chamada para receber um prémio numa qualquer gala televisionada, Lígia prossegue, em Dressing Room, o seu trabalho em torno das questões de classe, confrontando a atualidade com o peso das palavras, e assim despindo, através do recurso à ironia e ao sarcasmo, muitas das ambiguidades e contradições da nossa sociedade. A partir do objeto de luxo que a veste, não aponta apenas a si e aos artistas, mas a todos nós, a plateia que, tal como no título do livro de Guy Debord, é parte daquilo que o escritor e filósofo francês nomeou como “a sociedade do espetáculo“.
“Ao impor ao meu corpo este vestido de gala estarei a alimentar essa ideia de espetáculo, ou a expetativa do que é espetacular”, questiona Lígia no trilho do pensamento de Debord. Ao fazê-lo, “não estarei a colocar-me na antítese daquilo que parte dos artistas procuram nos seus próprios discursos e na sua linguagem anti-espetacularidade”?
Importa, mesmo no final de Dressing Room, perceber se o que mais contou foi a imagem ou as palavras, isto é, se o artigo muito caro, maravilhoso e ofuscante que a intérprete enverga vale mais do que os conceitos com que a mesma confrontou a plateia ao longo de cerca de 80 minutos. Poderá o aparato ter-se sobreposto à mensagem que serve para expor as desigualdades, a pobreza e a hipocrisia do privilégio neste mundo imperfeito?
Talvez a resposta venha a ser procurada já fora da sala de teatro. Contudo, nunca se sabe se, antes de sair, Lígia Soares não a tentará antecipar junto de si, espectador. Imagine, ali mesmo, caber-lhe a decisão de votar democraticamente qual a sorte imediata a dar ao vestido de 20.695 euros.
Dressing Room estreia-se esta quinta-feira, dia 4, na Escola do Largo, ao Chiado, permanecendo em cena, de quinta a domingo, até 14 de dezembro.