Teresa Villaverde

"Quando olhamos para a natureza e vemos que algo muito grave aconteceu, a natureza parece devolver-nos esse olhar"

Teresa Villaverde

A catástrofe dos incêndios de 2017 serviu de mote para Justa, o novo filme de Teresa Villaverde. Nesta história de ficção, um pequeno grupo de pessoas que perderam os familiares mais próximos encontra-se em processo de reaprendizagem da vida. Filmado na aldeia de xisto Álvaro, em Oleiros, e nos concelhos de Pampilhosa da Serra e de Lousã, onde as povoações mais sofreram com os incêndios, o filme lembra como tantas experiências na vida não são partilháveis nem entendíveis por quem não passou por elas.

Justa chega às salas de cinema a 4 de dezembro, oito anos depois do último trabalho da realizadora, Colo. Esta coprodução luso-francesa, protagonizada por Betty Faria, Filomena Cautela, Robinson Stévenin, Ricardo Vidal, Anabela Moreira e Madalena Cunha, foi tema para uma conversa com a realizadora, onde se aborda o método de construção da narrativa e as personagens que nela habitam.

O filme tem a sua génese nos trágicos fogos de Pedrógão. O que a levou a encontrar nestes acontecimentos motivação para contar esta história?

Como a todos, custou-me imenso ouvir aquelas notícias, pois são coisas que não costumam acontecer com aquela dimensão. Um ano depois, mais ou menos, tive de passar naquela zona e, em primeiro lugar, do ponto de vista visual era impressionante porque só se via negro, negro, negro, ao longo de quilómetros e quilómetros. Parecia mesmo que tínhamos entrado num outro mundo. Depois presenciei um episódio. Perdi-me por umas estradas e vi uma senhora, mais velha, sentada numa cadeira a olhar para um vale e para uma montanha que estavam todos pretos. Intrigou-me imenso. Questionei-me: o que faz esta pessoa estar ali? A olhar para quê? A pensar em quê? Fiquei com essa imagem na cabeça e pensei ir falar com ela, mas não fui. Não a esqueci. Por vezes, há qualquer coisa que se ouve, ou vê, e que está sempre a voltar. Isso levou-me a querer conhecer as pessoas das várias aldeias que enfrentaram os incêndios de 2017. Contactei a Associação das Vítimas de Pedrógão e fui lá. Depois foi um processo impressionante.

Falou com os sobreviventes e vítimas dos incêndios?

Sim. Cheguei lá um ano depois da tragédia e a sensação que tive foi que ainda estavam todos em estado de choque. Fui sozinha, não levei ninguém comigo. Nem câmara, nem microfone. De um modo geral as pessoas receberam-me em casa. Os que tinham casa… As histórias que fui ouvindo, a maneira como as pessoas as contavam, o olhar delas… sendo que umas eram mais velhas, outras eram miúdos que tinham perdido os pais. Foi muito forte, nunca tinha tido uma experiência assim. A partir daí comecei a sentir que devia escrever. Escrevi várias versões até chegar a esta. Levei ainda muito tempo a encontrar o tom.

A Justa e as personagens que, como ela, vivem o impacto direto da tragédia tentando prosseguir a sua vida. Mas, apesar de se apoiarem uns aos outros, há uma enorme desesperança. Foi este sentimento que quis transmitir?

O que aconteceu não dá para “desacontecer”, mas as pessoas vão sobrevivendo. Apesar de tudo, vemos no filme que há ligações entre as personagens, porque no fundo todos, cada um à sua maneira, viveram aquela tragédia. Portanto, de alguma forma, eles têm uma coisa muito forte em comum e se forem para outro lugar isso desaparece. Houve uma coisa muito interessante que me ocorreu neste processo. Pensei que alguém que viveu aquilo, naquele local, e perdeu pessoas da família, quereria ir para outro sítio. Mas não. Acho que isso, embora não seja dito no filme, está presente na narrativa. De alguma maneira aquele território é, por um lado, o que liga aquelas pessoas àqueles que perderam. Por outro lado, se saírem dali ninguém os vai entender. Este sentimento é muito comum a todo o tipo de tragédias, sejam guerras ou catástrofes naturais, se formos para outro lugar nunca vamos ser iguais às outras pessoas. Nós que estamos de fora podemos imaginar, mas é só isso. Temos muita coisa em comum com aquelas pessoas, somos humanos, queremos ajudar-nos uns aos outros, mas aquilo que eles viveram nós não vivemos e nunca vamos compreender totalmente.

A fotografia de Acácio de Almeida revela a paisagem de forma sublime e, à semelhança das personagens, reflete a tragédia. Podemos afirmar que a paisagem é também uma personagem da narrativa?

Sim, completamente. A paisagem é um personagem e devolve-nos o que ocorreu, isto é, Quando olhamos para a natureza e vemos que algo muito grave aconteceu, a natureza parece devolver-nos esse olhar. Quando nos deparávamos com aquela zona ardida havia uma sensação de imponência. Apesar de estar tudo preto, aquilo era imponente no sentido em que havia uma força e um silêncio que nos era devolvido. O silêncio era enorme, porque não havia animais, não havia nada. Era impressionante.

O elenco inclui atrizes consagradas, mas também não atores, como Madalena Cunha no papel de Justa. Porquê a escolha de incluir atores que não são profissionais?

Já fiz isso muitas vezes e não vejo nenhuma complicação em misturar não profissionais com profissionais. Por exemplo, para a Betty Faria, que é uma atriz fantástica, com décadas de carreira, foi de uma naturalidade imensa contracenar com aquelas pessoas. Os atores nunca gostam de ouvir isto (e eu adoro atores e adoro trabalhar com atores profissionais, é uma profissão que admiro imenso), mas há alturas em que preciso de uma pessoa que ainda não tenha nenhum conceito sobre a representação. Alguém que eu sinta que tem muita vida dentro e que se a filmar não precisa de estar propriamente a representar. Foi o que aconteceu com este filme. Claro que eles também representam, porque não são aquelas personagens, mas é
uma primeira vez e ao apanhar essa primeira vez de alguém, consegue-se sempre muita coisa que depois nunca mais volta a estar lá.

A psicóloga, interpretada por Filomena Cautela, é a única personagem que não viveu a tragédia, nem pertence à localidade. Embora também tenha vivido um grande trauma, é ambígua. Pode falar-nos um pouco sobre ela.

A Lúcia, a personagem da Filomena Cautela, é difícil de explicar. Mas percebemos que não vive em Portugal e que, por algum  motivo, se sentiu atraída por aquelas circunstâncias. Foi para ali com o intuito de ajudar, de resolver, mas não conseguiu nem resolver as questões das outras pessoas, nem as dela. De alguma maneira, se eu quiser ser 100% honesta, muito daquela personagem sou eu. Porque, como a Lúcia, eu também fui lá, ouvi aquelas pessoas e depois vim-me embora.

Os seus filmes retratam, frequentemente, realidades duras e trágicas. Imigração, marginalidade, problemas económicos. É com o intuito de não deixar esquecer estas vivências que conta estas histórias?

Sim, acho que se faz cinema com essa intenção. Quando me inteiro de certas realidades fico de alguma maneira ligada às pessoas que conheci e sinto a necessidade de partilhar aquilo que aprendi.