entrevista
Raquel Tavares
"Não me conformo com a ideia de ter de ser uma coisa só"
Cinco anos depois de ter anunciado uma pausa na carreira musical, Raquel Tavares regressa aos palcos. A 5 de dezembro, a fadista leva ao Coliseu dos Recreios o espetáculo Inevitabilidade de Cantar, que traduz bem as saudades que tinha do seu público. Na ocasião, a artista irá apresentar Deles por mim (e à antiga), o novo disco, lançado a 28 de novembro, onde canta "fados de homens".
Em 2020 anunciaste o afastamento dos palcos. Cinco anos depois, o amor pela música falou mais alto?
O título deste concerto diz isso mesmo, Inevitabilidade de Cantar. Tenho 40 anos e comecei a cantar há 35, é uma vida inteira a cantar. A certa altura dei por mim a sentir essa falta, foi mesmo uma inevitabilidade, porque neste espaço de tempo em que estive longe da indústria da música não deixei de ser fadista. Na altura da pandemia, quando as casas de fados começaram a reabrir, eu ia aos fados e cantava uma coisinha ou outra para matar a saudade. Percebi que sentia falta de cantar para as pessoas. A primeira vez que pisei o palco do Coliseu tinha 12 anos, foi em 1997 [na Grande Noite do Fado, que venceu]. A minha ideia de cantar é para as pessoas, tenho de o partilhar com alguém. E começou a tornar-se inevitável.
És a mesma artista que eras há cinco anos?
A idade e o distanciamento fizeram-me perceber o que realmente importa. Isto tem de ser prazeroso, tem de me divertir. Neste momento da minha vida, estou mais certa do que não quero e não posso deixar que isto seja assoberbante. É claro que causa ansiedade, é claro que sinto a responsabilidade, mas isto tem de ser bom, partilhar a música com pessoas tem de me dar prazer. E foi por isso que voltei a cantar há dois anos de forma muito pautada. Comecei por cantar em Espanha, para as pessoas não me olharem com histórico para perceber como me sentia. Fiz esse teste e concluí que me apetecia voltar ao fado tradicional e que a melhor forma de o celebrar era no Coliseu. Tive a sorte de já ter cantado em salas maravilhosas, estive no Carnegie Hall em outubro, que é uma das mais emblemáticas do mundo, mas o Coliseu de Lisboa assusta-me mais, provoca-me um friozinho na barriga, por existir uma ligação emocional muito forte.
Atribuíste o teu afastamento a um certo cansaço com o mediatismo.
Hoje, estás mais preparada hoje para lidar com isso?
Hoje, já sei um bocadinho mais do que há cinco anos. Tenho de lidar com as pessoas, são elas que consomem a minha música e sem elas não existo como artista. Acho que, na altura, não me expliquei muito bem: não é o ser mediático que me incomoda, embora haja coisas no mediatismo com as quais não é fácil lidar, como estar exposto à opinião de toda a gente que acha que tem o direito de a dar. Hoje, já entendo que as pessoas têm o direito às suas opiniões, como eu tenho o direito de não as levar a peito. Tenho outra serenidade. Estou mais blindada para situações que na altura me podiam transtornar. Parecia que a minha decisão tinha sido uma tragédia para algumas pessoas. Nunca ninguém veio ter comigo para me destratar, as pessoas que vêm ter comigo vêm com amor. A grande maioria vem dar-me um abraço e dizer que tem saudades. Há pessoas que nem sequer sabem que voltei a cantar, muitas perguntam-me quando é que regresso.
Atualmente ainda se justifica que o fado esteja associado a uma certa imagem?
Eu sou, talvez, das fadistas mais tradicionais. Gosto muito da tradição, elevo-a, faço-me valer dela. O fado é uma música de cariz popular, que o povo teve necessidade de criar para se expressar, para se lamentar. Claro que o fado também canta alegria, canta o bairro popular, mas a imagem do fado é, à semelhança do que ele representa, na sua grande maioria, o lamento. Se fores a Sevilha ver um tablao de flamenco, como é que queres ver as espanholas vestidas? Queres vê-las de bolas e folhos, rosas na cabeça e peineta. Uma fadista, que imagem é que tem? A da mulher vestida de negro, mas não tem de ser sorumbática. Cresci com mulheres fadistas muito elegantes, lindas. A Beatriz da Conceição ou a Amália Rodrigues eram mulheres que enchiam o palco no seu estilo negro e no seu xaile. Ainda existe um certo preconceito em relação à imagem da fadista que é antiquada, que é envelhecida. Discordo absolutamente. Se algum dia chegar a ser parecida com elas vou ficar muito contente. E, por isso, sou a primeira a defender essa imagem.
Gostas de te vestir de acordo com a tradição…
Toda a vida usei xaile, fui criada num ambiente tradicional. Não estou a dizer que para se ser fadista tem de se usar xaile, não é isso. Eu preciso de o usar, fui criada nesse meio, faz-me sentido. É claro que já apareci noutros momentos com uma imagem diferente, mas porque estive sem cantar fado tradicional. Cantei durante muito tempo um fado mais contemporâneo, o Raquel não é um disco de fados tradicionais. O álbum de homenagem ao Roberto Carlos muito menos, era uma abordagem ao seu repertório por uma fadista. Agora, regresso com o fado tradicional, indo mesmo à raiz. Tenho muitas saudades daquilo que me fez ser fadista. É importante que não nos esqueçamos de onde é que vimos. Isto é uma tradição oral, tem de se falar dela. Têm de se lembrar os autores, os poetas, os músicos. Temos um histórico tão rico que a minha geração e a mais recente têm muita sorte. Olhem só o espólio onde nos podemos inspirar! Os fadistas dos anos 50, 60 e 70 eram brilhantes, ainda hoje cantamos os fados deles. Por isso, sim, gosto de me vestir com a tradição.
Em outubro, atuaste no espetáculo Amália na América no Carnegie Hall, em Nova Iorque, ao lado de Ricardo Ribeiro, Cristina Branco e da Orquestra Sinfónica Portuguesa. Que impacto teve essa experiência?
Partiu de um convite da Égide, a propósito dos 50 anos do concerto que a Amália deu no Hollywood Ball, em Los Angeles, onde cantou o cancioneiro português. O ano passado já tínhamos levado este concerto celebrativo ao CCB e tinha sido um enorme desafio, especialmente para mim, já que a Amália nunca foi a minha maior referência. Eu tinha outras fadistas como referências, a Amália esteve sempre muito longe do universo onde eu cresci a cantar, parecia que estava num outro lugar à parte e eu nunca me cheguei lá tanto, só agora é que começo a aproximar-me mais. Por isso, foi altamente desafiante cantar esse reportório. Eu e o Ricardo cantámos o cancioneiro, e a Cristina fez um brilhante trabalho a cantar as canções da Broadway. Como o concerto no CCB correu muito bem, a Égide teve o atrevimento [risos] de levar esta turma toda para os Estados Unidos. Fizeram a proposta ao Carnegie Hall, que rapidamente aceitou. Fomos 200 pessoas nessa viagem para os Estados Unidos, foi um projeto megalómano, muito ambicioso. Foi impressionante entrar naquela sala tão mítica e cheia de histórias e cantar Amália. Uma experiência marcante.

O que podes revelar sobre o novo disco, Deles por mim (e à antiga)?
Como venho de um meio muito tradicional, tive de me fazer fadista sob as regras da geração antiga, sendo que, infelizmente, a grande maioria já cá não está. Há um repertório muito específico que eu adorava quando era miúda: o repertório dos homens, a poesia masculina. Diziam-me que eram fados de homem, que não os podia cantar. Ainda existe muito esse estigma da poesia ter um género, e a poesia não o devia ter. Fui buscar clássicos cantados por Carlos do Carmo, Tristão da Silva, Carlos Ramos, Fernando Maurício… Não é uma ode aos homens, é uma ode à poesia dos homens. Canto tudo no masculino, para melhor cantar a mulher: histórias de amor, despeito, ciúme. O homem a cantar o despeito tem uma graça desgraçada, é muito diferente da mulher. Este álbum tem também outra particularidade, ter sido gravado à antiga, sem correções na guitarra, viola, baixo e voz. Todos ao mesmo tempo e sem retificações. Não tem afinação, não tem picagens. Normalmente, vai-se para o estúdio e primeiro fazem-se as vozes guias, depois põe-se a viola, seguida da guitarra e, por fim, corrige-se aqui e ali. Eu queria que fosse gravado como era antigamente, não pode estar mais cru. Se fizéssemos três takes de cada fado, escolhíamos o melhor. Quis passar essa autenticidade a quem ouvisse o álbum.
O concerto vai ter por base este disco?
Vou visitar alguns temas que fazem parte da minha vida e depois é que vou cantar os fados dos homens. Mas, acima de tudo, queria muito cantar num palco de 360º, no centro do palco para criar uma maior proximidade, queria levar o conceito de casa de fados para a sala do Coliseu. Vai ser quase uma tertúlia, as pessoas vão estar muito perto.
Vai ser uma noite de fados então…
Uma noite de fados, não tem pretensão de ser mais do que isso. Acredito que é suficiente. Em Espanha, há o flamenco; no Brasil, o samba; em Cabo Verde, a morna, e em Buenos Aires, o tango argentino. Independentemente das inovações e da contemporaneidade, estes países estimam a sua música de raiz, na sua forma tradicional, e isso é mais do que suficiente. O fado também o é e tenho tido a prova viva disso. As pessoas comovem-se com o fado tradicional. Nesta altura da minha vida, sinto a obrigatoriedade de o fazer, devo-o a esta música e às pessoas com quem cresci.
Porquê o Coliseu dos Recreios?
Para ser simbólico, tinha de ser no Coliseu. A minha mãe trabalhou na RTP durante muito tempo e todos os anos fazia-se o circo de Natal no Coliseu. Vi aqui o António Calvário, participei na Grande Noite do Fado… Há aqui qualquer coisa de muito especial, tenho amor a esta sala. Deixa-me muito nervosa, mas não me imaginaria fazer isto noutro lugar, só podia ser aqui.
És, acima de tudo, uma fadista?
Não sei se a minha essência será só isso. A minha primeira identidade talvez seja. Mas eu não queria ser cantora, queria ser jornalista, repórter de guerra. Como a minha mãe trabalhava na RTP, o jornalismo era o que estava no meu foco. A minha vida era comunicar, não era cantar, mas a música foi inevitável. Em todas as ocasiões em que dizia “agora vou por aqui”, a música trocava-me as voltas. A minha vida a cantar foi inevitável e fui teimosa, tentei muitas vezes fazer outras coisas. Não me conformo com a ideia de ter de ser uma coisa só. Gosto imenso de dançar, de brincar, de tirar cafés, gosto de fazer muitas coisas. Tenho sido bem-sucedida, mas também tenho tido sorte. Há um fator sorte, não é falsa modéstia. Acredito no que faço, mas acho importante permitir-me fazer coisas diferentes, não me levar muito a sério, errar. Sei que é preciso ter alguma audácia, mas às vezes é preciso um bocadinho de loucura na vida.
O teu regresso é definitivo?
Não sei responder a isso, não quero criar falsas expectativas. Desconheço o dia de amanhã. A pandemia foi um desafio de que ninguém estava à espera, há pouco tempo tivemos de lidar com um apagão… Fazer planos a médio e longo prazo é atrevimento porque a vida muda-nos as voltas todas. Hoje, apetece-me muito cantar. Quero lançar este disco e cantar para as pessoas. Sou muito grata a quem me quiser ouvir, mas não sei o que o futuro reserva.