teatro
Dentro da gaiola só se esvoaça
João de Brito dirige "Menina Júlia" de August Strindberg
Mais de 130 anos depois da estreia, Menina Júlia continua a ser um extraordinário tratado sobre sedução, desejo, ódio, repulsa, recalques e conflitualidade de classes. Numa época em que voltam a soar alarmes que julgávamos silenciados, João de Brito dirige Helena Caldeira, João Jesus e Rita Brütt num novo olhar sobre o clássico de Strindberg.
Embora seja noite de São João, se ouça a música e a zoada dos festeiros lá fora, na cozinha da casa tudo parece estar nos “devidos” sítios. Cristina (Rita Brütt), a cozinheira, arruma pratos e talheres, e ultima a iguaria predileta do noivo, João (João Jesus), que estará prestes a chegar. Ele entra, excitado e animado pelo baile; come, bebe, namorisca com Cristina, e a seguir cuida das botas de cano alto do patrão. Eis que, vinda das festividades, entra em cena a menina Júlia (Helena Caldeira), extrovertida e ébria, mas também provocante, insinuante e manipuladora.
Como algo que está, efetivamente, nos “devidos” sítios, num primeiro momento, a filha do patrão manda e os criados obedecem, nomeadamente na satisfação dos mais ridículos caprichos, sem que se reconheça em Cristina e João qualquer vontade de questionar a ordem vigente. Entretanto, vencida pelo cansaço, a cozinheira adormece, e Júlia envolve-se com o criado do pai num perigoso jogo de sedução. Ao longo da noite, aquilo que parece estar nos “devidos” sítios vai sendo desarrumado. Entre o desejo e o amor, o ódio e a repulsa, inicia-se uma disputa que se revelará trágica, com João a tentar por todos os meios vencer Júlia, mesmo que, no final, nada ganhe.

A “toxicidade” da relação de Júlia com João é o sublinhado essencial na adaptação que o encenador João de Brito faz do clássico de August Strindberg. “São personagens muito complexas e oscilantes, que tão depressa se estão a amar como se estão a destruir”, observa. Tendo sido escrita no final do século XIX, Menina Júlia parece “ressoar cada vez mais, sobretudo quando voltamos a ter na ordem do dia discursos misóginos e um conservadorismo que pretende, de novo, reduzir a condição da mulher ao mundo doméstico”.
Embora a peça de Strindberg se destaque pela análise que faz das relações de poder e de classe, verificáveis nas oscilações constantes de posição que os personagens vão ocupando no decorrer da ação, a João de Brito interessa que o público, sobretudo o mais jovem, reflita sobre “o estado de violência psicológica latente em muitas relações amorosas”, que surge “agarrado a ideologias extremistas que apenas significam regressão social”. “É estranho como voltámos hoje a discutir coisas que pareciam estar já arrumadas nas nossas sociedades”, desabafa o encenador.

Ao mesmo tempo, e para isso contribui o cenário circular concebido por Henrique Ralheta, João de Brito procurou colocar o trio de personagens dentro de “uma gaiola metafórica” que “representa a ordem social, que tanto submete João e Cristina, como Júlia, às suas respetivas condições de classe”. “A ideia veio do próprio texto”, explica, “da gaiola redonda de que fala Strindberg, onde Júlia tem o seu canário, e que é para ela, apesar de aprisionado, o seu único pulsar de uma vida livre.”
O drama de Júlia, que no tempo da peça passa de uma posição de poder para uma subalternização humilhante, remonta mesmo à sua própria condição de privilégio. “Ela tem noção da gaiola onde a colocaram desde sempre, daí projetar os seus anseios e desejos no que julga ser o modo de vida dos criados”, destaca o encenador.

Sem direito a final feliz, a longa noite da festa de São João culminará num amanhecer trágico para Júlia, mas também para João, que vê os seus sonhos e ambições frustrados, e Cristina, que nem o amor poderá reclamar como seu.
Menina Júlia estreia-se a 27 de novembro na Sala Estúdio do Teatro da Trindade INATEL, mantendo-se em cena até 18 de janeiro do próximo ano.