entrevista
Noiserv
"A música serve para contemplar, para ser banda sonora de certos momentos"
				David Santos, conhecido por Noiserv, celebra 20 anos de carreira com o lançamento de um novo disco, 7305. O álbum surge cinco anos depois de Uma Palavra Começada por N, e reafirma o músico como um dos mais originais e inovadores da sua geração. Dono de uma sonoridade única, o multifacetado artista é muitas vezes chamado de “homem-orquestra”, por tocar todos os seus instrumentos.
Celebras 20 anos de carreira. O que é que este número redondo representa?
Deixa-me feliz que, ao fim de 20 anos, ainda tenha a mesma vontade de fazer música que tinha no princípio. Consegui fazer vários discos e muitos concertos, foi um caminho sempre crescente: começou comigo a estudar enquanto fazia música ao mesmo tempo. Depois, comecei a trabalhar, voltei a estudar, tive uma bolsa de investigação, tudo isto ao mesmo tempo que fazia música, até passar a fazer apenas música. Portanto, é um reflexo de tudo isso. Faz-me sempre confusão esta ideia dos marcos temporais, mas gosto de perceber que, ao fim deste tempo todo, ainda me sinto muito parecido com o que era quando comecei. Não vejo uma mudança, mas sim uma evolução.
Vivemos num mundo de consumo rápido em que ninguém compra discos. Isso influencia a maneira como compões?
Penso que não tem impacto na maneira como componho porque sou sempre muito inseguro em relação a todas as coisas que faço, até elas chegarem a um ponto em que sinto que não conseguia fazer melhor. Antigamente tinha a ideia de que quem nunca desiste, mais tarde ou mais cedo, obtém algum resultado. Atualmente isso já não é bem assim. O resultado não depende só da dedicação ou do tempo que se investe. É também a sorte do algoritmo, é a conta do Instagram ou do Facebook ter sido criada há mais ou menos tempo. Há uma série de fatores e de variáveis que, no final, podem tornar ou não o trabalho que tivemos mais inconsequente. Antigamente trabalho significava resultados, atualmente pode não ser assim.
Qual o melhor feedback que te podem dar?
Sempre gostei de passar momentos da minha vida com música, portanto, se alguém me disser que passou momentos da sua vida a ouvir a minha música, parece que o ciclo fica mais real. Como se aquilo com que sempre sonhei ou que sempre me arrepiou ao ver os outros fazerem, estivesse a acontecer comigo. Se calhar esse é o maior elogio que podem dar à minha música. Para mim, a música serve para contemplar, para ser banda sonora de certos momentos. Portanto, se a minha tiver esse papel na vida de outra pessoa, acho que fica fechado um ciclo de felicidade.
Há alguma história engraçada que tenham partilhado contigo?
Tenho várias, umas mais felizes, outras menos. Uma vez toquei no casamento de um casal que se tinha conhecido num concerto meu. Eles queriam que eu tocasse uma música específica durante a entrada da noiva. Essa música tinha dois minutos e tal, e acabei por ter de a tocar em loop durante uns 15 minutos. Há histórias um bocadinho mais tristes, mas com um final não tão triste, como pessoas que estavam numa fase pior da vida e que uma determinada frase de uma música foi capaz, não de mudar a vida da pessoa, mas fazê-la perceber as coisas de outra forma. Atualmente, com as redes sociais, há uma facilidade muito maior de entrar em contacto com quem me ouve, por isso vou recebendo muito feedback.
Quando estás em processo de composição, em que momento dás as músicas por terminadas?
Tenho sempre medo que um dia esse momento deixe de acontecer e que eu fique para sempre descontente em relação a determinada música. Felizmente há sempre uma altura em que sinto que já não consigo alterar mais nada. Não há uma regra, mas há realmente um momento em que isso costuma acontecer. Normalmente choro quando isso acontece. Faço parte de uma banda, os You Can’t Win, Charlie Brown, e aí há sempre um barómetro: se eu chorar com a música é porque ela está fechada. Nas minhas canções a solo isso acaba por acontecer muitas vezes. Ou porque os acordes me emocionam de uma maneira extrema, ou porque as frases que estou a cantar são momentos específicos da minha vida que me fazem muito sentido, mas isso quase sempre acontece nesse momento final. Às vezes é mais rápido, às vezes é mais lento, não há uma regra.
És muitas vezes chamado de “homem-orquestra” por tocares todos os teus instrumentos. Para quem também faz parte de uma banda isso não é um ato solitário?
É um ato solitário, mas não me causa maus sentimentos. No período de ensaios pode ser um bocadinho mais maçador. Um ensaio em banda passa mais depressa do que um ensaio sozinho. Às vezes fico quatro, cinco horas a fazer a mesma coisa quando estou a compor e acabo por entrar num sítio de descoberta que é bom. É uma coisa que não sei explicar, até pode estar relacionado com a área que estudei e de que sempre gostei, que tem a ver com matemática e resolução de problemas. Esse momento é solitário, mas é um momento de procura e de descoberta. São momentos emotivos o suficiente para me manterem arrepiado, e isso mantém-me mais vivo.

Como não podia deixar de ser, o novo disco tem um título peculiar: 7305. Qual o significado?
7305 é o número de dias que 20 anos contém. A capa do disco é um calendário perpétuo destes últimos 20 anos. Esses 7305 dias representam o período entre 19 de março de 2005, quando foi o primeiro concerto de Noiserv, até 19 de março de 2025.
O disco tem algum fio condutor?
Como em todos os outros, as músicas refletem sobre coisas que me afetam, como dúvidas existenciais, ou o que éramos em criança, para dar exemplos. Depois, pela primeira vez, há duas ou três músicas que têm uma letra ligeiramente mais política, algo que nunca tinha escrito.
Porquê?
Estamos a viver uma fase muito conturbada. Essa realidade está muito mais na minha cabeça do que estava antes. A temática do disco é muito mais atual, está relacionada com o meu pensamento ou com as coisas que me vão afetando. Por exemplo, a 20.27 fala sobre os campos de concentração de Auschwitz, que visitei em janeiro do ano passado e que foi uma experiência muito impactante. Fez-me algum sentido abordar, de uma maneira mais filosófica ou mais metafórica, o que se passou ali. As músicas são sempre vivências e histórias, umas reais, outras interiores, mas não visíveis.
O disco conta com várias colaborações, como Surma, Afonso Cabral, Best Youth, Selma Uamusse, Milhanas, entre outros. Sabias exatamente que vozes querias para determinados temas?
Ao contrário dos outros discos, em que havia uma questão sempre muito mais solitária, aqui pensei nesta ideia de me ter cruzado com muitas pessoas cujo trabalho admiro ao longo destes anos. Não tinha, à partida, nenhuma ideia concreta, os convidados que surgiram foram aparecendo relacionados diretamente com as músicas. Quando estava a compor a Casa das Rodas Quadradas fazia-me confusão entrar sozinho no refrão. Achei que a voz da Milhanas ia ficar perfeita ali. A música em que a Surma participa tinha todo um universo que é uma referência para nós os dois, a questão da Islândia e dos Sigur Rós, e pensei que precisava de uma voz que fosse conectada com a minha, concretizando a ideia de uma amizade entre duas pessoas que estão no cimo de um lugar qualquer a cantar. Com A Garota Não, a letra da música é mais política e já tínhamos falado tantas vezes em gravar juntos que pensei ser a ocasião perfeita. Com o coro de vozes, tinha a premissa de que essa música seria só voz e guitarra, mas depois optei pelo coro. Convidei o Afonso Cabral, que é da mesma banda onde toco, a Selma, que mora perto de mim e andou comigo no liceu, o André Tentúgal, com quem falo quase todos os dias… Os convites foram surgindo assim, de forma natural. Não exagerando na poética, parece que foram as próprias músicas que puxaram aquelas pessoas para si.
Tal como aconteceu no disco anterior, tens vindo a revelar este novo álbum aos poucos. É uma tentativa de reviver os tempos em que se ouviam os discos do início ao fim?
É uma tentativa de que o disco não seja apenas uma música, mas sim muitos momentos. É uma forma de dar a cada um desses momentos um bocadinho mais de vida. Hoje em dia, a partir do momento em que um disco sai, parece que já é todo antigo. Claro que há pessoas que ainda gostam de ouvir o disco todo e outras que se vão identificar com uma música específica mesmo que ela não seja o single escolhido. A minha ideia inicial era esta: num período em que não há tempo praticamente para nada (pelo menos as pessoas têm esse sentimento), se eu der a cada música um mês de destaque, se calhar ela acaba por ter mais tempo de escuta. A tentativa foi um bocado essa.
A 26 de novembro, apresentas este trabalho no CCB. Os concertos são sempre momentos de grande originalidade. Estás preparado para surpreender o público outra vez?
Desde o disco de 2016 que tenho trabalhado sempre com o Berto Pinheiro na questão da luz. Em 2016 eram uns painéis que tinham uma câmara projetada, depois passámos para o cubo, que ganhou uma energia diferente de luz. Estamos a pensar em conjunto, a nível de luz e do próprio alinhamento, num conceito diferente. Fugir eventualmente da questão do cubo para se perceber que é outro lugar, mas tentar apanhar as coisas que em todos esses momentos foram relevantes, como as câmaras, que se justificam porque estou a tocar sozinho e há muitas coisas que estão escondidas e que as pessoas não conseguem ver. Porém, ainda estamos no período de descoberta. Em relação ao alinhamento, como é uma celebração dos 20 anos, é redutor tocar só o disco novo.
Vais ter convidados?
Sim. Ainda estou a perceber quais é que vou ter ou não. Até agora, posso confirmar a presença da Surma.