exposição
O tempo dos ateliês com vista para a avenida
No MAC/CCB, "Avenida 211" evoca uma experiência singular na arte contemporânea portuguesa
Entre 2006 e 2014, uma experiência absolutamente singular teve lugar na artéria mais nobre da cidade de Lisboa. Um grupo de artistas teve à disposição da sua criatividade um edifício da avenida da Liberdade pertencente ao Banco Espírito Santo. Através de dezenas de obras de arte e múltiplos registos, Avenida 211 - Um espaço de artistas em Lisboa conta a história desse tempo.
Imagine 5400 metros quadrados em plena avenida da Liberdade, dispostos por quatro pisos, uma cave e um sótão. Em 2006, foi possível ocupar todo esse espaço para fins artísticos graças a uma iniciativa do escultor e engenheiro civil António Bolota, a quem o Banco Espírito Santo, proprietário do número 211 daquela avenida, confiou a gestão de todo o imóvel para que este desencadeasse aquela que viria a ser, nas palavras do próprio, “uma experiência colaborativa ímpar e singular em Portugal”.
O objetivo inicial era proporcionar espaços de trabalho para artistas. Além do próprio Bolota, os primeiros a “receber chave” foram Virgínia Mota, Daniel Barroca e Francisco Tropa, mas até 2014, ano em se dá o colapso do banco proprietário do imóvel, mais de quatro dezenas de artistas chegaram a “residir” na avenida da Liberdade. Isto, sem contar com as centenas que por ali passaram integrados em vários projetos curatoriais, que iam das artes plásticas e visuais à música ou à performance, sendo de destacar coletivos como The Barber Shop, o Projecto Teatral ou o Parkour.

Como lembra Nuria Enguita, que com Marta Mestre assegura a curadoria da exposição Avenida 211 – Um espaço de artistas em Lisboa, “aquele edifício era um lugar para a experimentação e para o pensamento, e durante quase uma década funcionou como motor de desenvolvimento artístico na cidade de Lisboa”. Entre o mais velho dos artistas residentes, o pintor e escultor Pedro Morais, e o mais jovem, Diogo Bolota, o número 211 da avenida da Liberdade albergou nas suas salas várias gerações de criadores. Naquele espaço, o recentemente desaparecido João Queiroz produziu os maravilhosos cenários para a adaptação ao cinema por João Botelho de Os Maias, de Eça de Queiroz; Gabriela Albergaria desenvolveu a sua investigação sobre o Jardim Botânico de Oxford, que está na origem da publicação Hither and Thither, misto de guia académico e livro de artista; e Pedro Barateiro pintou a partir das manifestações anti-troika que desfilavam na avenida da Liberdade. Para lá disso, o Avenida 211 foi a primeira morada da Kunsthalle Lissabon e na memória da cidade ficam os eventos de música e performance organizados pela Filho Único, “que chegaram a juntar mais de 700 pessoas”, destacando-se concertos memoráveis de Norberto Lobo, Kimi Djabaté ou Tó Trips.
“O Avenida proporcionou uma experiência diferente para cada artista, mas a natureza do projeto era colaborativa, o que fazia o espaço ser muito partilhado”, recorda Bolota. Dispor de um imóvel naquela que é, talvez, a artéria mais nobre da cidade, “não ter de pagar renda, nem água nem luz”, acabou por proporcionar a todos os criadores que por lá passaram “um período muito fértil para a produção artística”.

Até abril de 2026, no MAC/CCB, através de obras de cerca de 60 artistas que se cruzaram no 211 da avenida da Liberdade, percorrem-se aqueles anos que precederam o estado de financeirização da cidade, que coloca, a valores atuais, o metro quadrado naquela zona à “módica” cifra de 9285 euros. Para sublinhar isso mesmo, e afirmar que tudo o que vamos ver seria impossível acontecer hoje, a exposição inicia-se, precisamente, com um metro quadrado delimitado no chão e, lá dentro, o preço atual praticado.
Depois de uma primeira sala oferecer um olhar sobre o maravilhoso edifício oitocentista que esquina com a rua Rosa Araújo, acompanhando a investigação desenvolvida por Giorgia Casara e Sara de Chiara, o visitante segue um percurso mais ou menos arbitrário, já que não há um roteiro fechado para ver Avenida 211. São mais quatro salas cujo discurso resulta de um “diálogo com os artistas e na exploração do material”. No fundo, como refere Enguita, procurou-se transpor para esta exposição o espírito de “espaço aberto, um ecossistema móvel de gente que entrava e saía”, que definia a vida no edifício até há pouco mais de uma década.
Como António Bolota faz questão de afirmar, “10 anos após o fecho do Avenida, vejo nesta exposição a mesma liberdade que todos partilhávamos naquele espaço”. Como se ainda pudéssemos testemunhar criadores como Pedro Henriques, Carla Filipe, Diogo Evangelista, Joana Escoval ou Pedro Tropa a olhar a vida correndo a partir das janelas do edifício, num tempo em que foi possível haver ateliês de artistas com vista para a avenida.