Fernando Duarte

A Companhia Nacional de Bailado dança "Os Maias"

Fernando Duarte

O diretor artístico da Companhia Nacional de Bailado (CNB) não é recém-chegado aos bailados narrativos. A proposta de levar a CNB a dançar Os Maias, a partir de 16 de outubro no Teatro Camões, tem exemplos próximos em abordagens semelhantes a O Primo Basílio (2020) e Memorial do Convento (2022). A intenção é sempre criar elos entre a dança e a nossa forte herança literária.

O romance Os Maias, de Eça de Queirós, já foi adaptado ao teatro e ao cinema. O que viu nele suscetível de configurar um bom espetáculo de dança?

As personagens, acima de tudo. Um dos aspetos mais interessantes do universo queirosiano é a forma como cria personagens de um pormenor muito próprio deste autor, que não se resume a elas, mas que inclui os espaços e os sentimentos, e isso é muito estimulante em termos de suscitar uma proposta coreográfica. Como esses detalhes podem ser corporificados em gestos e respirações coreográficos, sem esquecer a própria música, porque existe um envelope musical que reveste a narrativa.

Uma das características distintivas da escrita queirosiana é a ironia. Como se transfere essa particularidade para um bailado?

Muitas vezes resulta da combinação de diversos aspetos. Perceber exatamente que partes da narrativa têm essa carga irónica que importa realçar, na medida em que existe uma ironia transversal Mas, depois há determinadas personagens ou eventos em que essa característica é mais notória. Implica selecionar essas ações e personagens num determinado equilíbrio com a música, de modo que seja também ela catalisadora dessa ironia. Como não dispomos da ironia pela palavra, temo-la pelo gesto e pela caracterização de cada personagem em ação.

A adaptação respeita a época histórica do romance [segunda metade do século XIX] ou pretende realçar a sua intemporalidade?

Pretende realçar a intemporalidade, embora respeitando a época. Pegando nas palavras do professor Carlos Reis, que é um grande queirosiano, e que assistiu à estreia da minha coreografia para O Primo Basílio, vai fazer seis anos, trata-se de uma releitura: é o mesmo Eça, porém, já outro. É uma forma contemporânea de todos nós enquanto sociedade relermos o Eça de Queirós e Os Maias. Eu tenho por regra não competir com o livro, porque o livro ganhará sempre. A minha ideia é de impulsionar a leitura do livro: quer as pessoas o leiam pela primeira vez ou o voltem a ler.

Como aborda o polémico tema da obra: o incesto entre Carlos da Maia e Maria Eduarda? De que forma expressa a questão central do tabu, do interdito?

Isso decorre da interpretação que cada um terá daquilo que constitui a intriga principal do livro. A meu ver, isso não acontece de forma premeditada, mas é coincidente com o destino trágico daquela família. Ainda que se perceba que Carlos no final, depois de saber da verdade, ainda tenta criar um cenário possível para a relação, temos de ver que naquela época poderia ser mais propício de acontecer o incesto pela proximidade dos cruzamentos familiares. Penso que atualmente a questão do incesto passa mais por ser uma herança da narrativa original, e menos matéria necessária de trazer à discussão.

Como interagiu com o trabalho de curadoria musical de Andrea Lupi, e que músicas iremos encontrar ao longo do espetáculo?

Conheço a Andrea Lupi há muitos anos e já tínhamos colaborado noutras ocasiões. Para ela foi de certa forma novidade criar um guião musical, que partiu do meu guião adaptado. Percebi que a ideia dela foi de ir muito além dos compositores de referência. Abriu o horizonte e o espaço de possibilidades musicais, o que me fez encontrar compositores cuja obra conhecia pouco: Gabriel Fauré, César Franck, Theresia von Paradis, Mélanie Bonis. Trouxe todo esse manancial de grande repertório do final do século XIX, para um ensemble de câmara: quarteto de cordas e piano. Foi para mim a descoberta de um património musical que me enriquece; e para ela o entendimento de como se faz um bailado com música pré-existente. Longe vão os tempos em que se faziam bailado e música em simultâneo…

A opção por adaptar um romance pode ser entendida como uma filiação no género do bailado narrativo e na tradição moderna inglesa de Frederick Ashton e Kenneth MacMillan?

Sem dúvida, e assumo-a, pese embora  todos tenhamos de ter noção de como podemos beber dessa tradição e referências de forma a criar os nossos próprios contextos e enquadramentos narrativos. O Royal Ballet marca uma forte herança dramatúrgica, em termos de teatro e de bailado, com carga literária e narrativa. Toda a Europa seguiu depois esse modelo e assistimos a várias adaptações de romances. Em anos recentes tivemos a Anna Karenina do Christian Spuck, que já havia feito uma Bovary. Portugal tardava em acompanhar essa tendência, e eu próprio, quando estava na Companhia Nacional de Bailado (CNB) como mestre de bailado, já era da opinião de que deveríamos enveredar por este caminho, uma vez que temos uma forte herança literária, desde o cânone à contemporaneidade.

Já em 2021 a CNB estreou Alice no País das Maravilhas, que repôs o ano passado. O regresso ao bailado narrativo pode significar uma tendência atual da CNB que vai fomentar enquanto seu diretor artístico?

Espero que sim e ainda bem que salienta o Alice no País das Maravilhas, pois quem teve oportunidade de ver essa produção exclusiva da CNB terá percebido que se trata de um bailado que segue o protocolo de clássicos como O Quebra-Nozes e A Bela Adormecida, sendo uma produção contemporânea que já assume o propósito de mostrar a narratividade ao público, com menos mise-en-scène e mais naturalidade.

Sente que estes bailados estão mais próximos do grande público?

Penso que despertam à partida um grande interesse. Nas nossas redes sociais, quando anunciámos a temporada, os seguidores deram conta da sua surpresa relativamente a Os Maias, indicando que iriam comprar bilhetes de imediato. Suscita curiosidade e aproxima o público que gosta de saber parte do que vai ver, antes de arriscar num espetáculo que lhe é inteiramente desconhecido.

Já se encontra a projetar a programação do cinquentenário da criação da CNB, que terá lugar em 2027?

Trata-se de uma data simbólica, mas gosto de reforçar a ideia de que a celebração não se irá esgotar na 50.ª temporada. Sejam bem-vindos à 48.ª temporada, que é tão importante como a quinquagésima, e levemos em conta que essa celebração já começou: não só no facto de termos criado vias para a consolidação de um repertório próprio, que dará azo a que essa celebração se faça da continuidade da criação, como também da reposição de peças exclusivas da CNB.