cinema
Cinco olhares sobre o mundo
Cinema documental em destaque no Doclisboa

O Doclisboa celebra 23 anos com um programa dedicado a “filmes que testam as possibilidades artísticas e políticas do cinema e recusam categorizações”. Cinco realizadores que têm mantido uma relação próxima com o festival e com o cinema documental falam-nos sobre a importância do Doclisboa e desvendam os filmes que ali vão estrear.
Entre 16 e 26 de outubro, o Doclisboa apresenta filmes, retrospetivas, conversas e debates que promovem uma reflexão sobre o mundo contemporâneo. Solveig Nordlund, Leonor Noivo, Pedro Pinho, Diogo Varela Silva e Pedro Florêncio são cinco realizadores com obras presentes nas várias secções do festival.
Pedro Florêncio
Pescadores de Bubaque exibido na secção da Terra à Lua
Começou a fazer documentário influenciado pelo professor José Manuel Costa, figura importante no lançamento do Doclisboa. “As aulas dele apaixonaram-me, senti que queria fazer documentário para sempre. Foi um momento refundador.” O realizador interessa-se por um tipo de cinema documental “em que se sente a relação intensa entre quem filma e o lugar filmado”. Cita Frederick Weissman ou Wang Bing como referências – cineastas que passam algum tempo em espaços definidos à procura do filme. Para Florêncio, esse contacto direto com os lugares é essencial, “tem a ver com descobrir nesse sítio as regras do filme, a matéria do filme”.
Nesta edição do Doc, festival que considera “uma escola de cinema, onde o documentário é encarado sempre como uma forma de resposta urgente ao que se passa no mundo”, exibe em estreia mundial Pescadores de Bubaque. O filme nasceu de uma viagem ao arquipélago dos Bijagós, onde conheceu dois rapazes que forneciam peixe aos hotéis. “Pedi-lhes para ir ver como é que eles pescavam e percebi que estava ali um filme por fazer.”
Diogo Varela Silva
Soco a Soco exibido na secção Heart Beat
Com uma filmografia maioritariamente composta por documentário, o realizador afirma que é neste género que encontra uma liberdade que, para ele, a ficção não oferece. “Gosto de contar histórias, e quando faço um documentário sobre uma pessoa ou uma realidade embrenho-me no tema, deixo-me ir. Vou descobrindo a história à medida que faço o filme. Embora haja um trabalho exaustivo de preparação, quando vamos para o terreno e estamos em contacto com a pessoa ou o assunto do filme somos surpreendidos por novos elementos.”
Lisboa é um cenário recorrente na sua obra. Soco a Soco, exibido em estreia mundial nesta edição do festival, regressa à cidade e traça o retrato de um lisboeta, Orlando Jesus, campeão de boxe nos anos de 1970 e também uma figura da noite: “uma personagem em vias de extinção” que espelha uma Lisboa que já não existe.
Varela Silva mantém uma ligação estreita com o Doclisboa: “é o ‘meu’ festival, é uma janela para o mundo. Permitiu-me descobrir vários realizadores que não conhecia, como Lech Kowalski, entre tantos outros. Tem uma preocupação programática que é essencial, com a presença de filmes que nos obrigam a pensar sobre o mundo atual, até com um cariz politizado, o que é fundamental.”
Leonor Noivo
Bulakna exibido na secção da Terra à Lua
A obra de Leonor Noiva cruza, recorrentemente, documentário e ficção. A vontade de juntar estas duas abordagens começou na sua formação: “Estudei na Escola Superior de Teatro e Cinema, onde a aprendizagem se centrava na questão ficcional. Posteriormente, completei o Curso de Documentário dos Ateliers Varan, na Gulbenkian, onde o foco era o cinema da verdade, documental. São duas escolas radicalmente diferentes. Ao longo da vida fui misturando estas duas formas de fazer cinema e, hoje, acabam por estar sempre interligadas no meu trabalho”.
Bulakna, o mais recente filme da realizadora, evoca o nome de uma antiga guerreira filipina que resistiu à invasão colonial, e também recorre a esta fórmula híbrida. O documentário, exibido em estreia nacional no Doclisboa, retrata a migração de mulheres filipinas recrutadas como empregadas domésticas em países estrangeiros.
Sobre o festival lisboeta, a cineasta afirma ser presença assídua: “ainda antes de ser Doclisboa, ia ao Amascultura, na [Centro Cultural da] Malaposta. Quando era estudante, tirava a semana para ir ao festival ver filmes. Sinto que o Doclisboa fomenta cada vez mais a discussão e contribui para uma reflexão sobre a sociedade. Esse engajamento, essa responsabilidade, são muito importantes”.
Pedro Pinho
O Riso e a Faca versão integral exibido na secção Da Terra à Lua
O documentário marcou o início da carreira do cineasta, que sempre sentiu uma urgência em captar a realidade à sua volta. Seguiram-se obras de ficção, género onde sente uma maior liberdade, mas no qual é necessário encontrar primeiro as condições de produção, e que “exige mais tempo, mais paciência”.
Apesar das diferenças entre os géneros, Pinho nota semelhanças no processo de filmagem: “é tudo muito parecido, aquilo que tento é construir na ficção condições para que a câmara se possa comportar como se estivesse a filmar um documentário. Gero uma situação narrativa ficcional, mas a equipa e os atores têm de reagir ao que acontece no momento da rodagem”.
O seu novo filme, O Riso e a Faca, estreou-se em maio no Festival de Cannes, onde a atriz Cleo Diára foi distinguida com o prémio de melhor atriz. A versão integral terá a sua estreia mundial no Doclisboa, um momento que enche o cineasta de orgulho: “o festival nasceu da associação Apordoc que é muito importante na consolidação do trabalho do documentário em Portugal, onde há muito tempo existe uma grande tradição de cinema documental e cinema de fronteira entre ficcional e documental.”
Solveig Nordlund
Memórias do Teatro da cornucópia exibido na secção Heart Beat
A cineasta sueca, naturalizada portuguesa pelo casamento com Alberto Seixas Santos, tem tido um papel marcante no cinema português. Em 1974 fundou o Grupo Zero, onde corealizou os seus primeiros filmes ao lado de nomes como João César Monteiro, Margarida Gil ou Jorge Silva Melo, muitos deles documentários de cariz político, que refletiam os tempos revolucionários que se viviam. Entre as várias colaborações ao longo da sua carreira, destacam-se Manoel de Oliveira, José Fonseca e Costa e João Botelho. Solveig Nordlund transitou com igual domínio pelo documentário e pela ficção, afirmando: “dependendo do material que tenho, sigo ou não o caminho do documentário. Há histórias que são histórias e pertencem à ficção. O que existe, o real, permite fazer um retrato desse objeto ou vivência”.
O Doclisboa tem sido sala para muitos dos seus filmes. Nesta edição estreia mundialmente o documentário Memórias do Teatro da Cornucópia no qual, guiados por imagens e testemunhos, ficamos a conhecer a companhia de teatro fundada por Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo nos anos 1970. Um filme óbvio para Solveig: “conheço a Cornucópia desde sempre. Com o encerramento da companhia e sabendo que tinham material filmado, era natural que propusesse fazer este documentário.”