Didi, Gogo e o tormento do tempo

"À espera de Godot" no Teatro do Bairro

Didi, Gogo e o tormento do tempo

Obra-prima do teatro do absurdo, a comédia À espera de Godot, de Samuel Beckett, está de volta ao palco numa encenação de António Pires. Adriano Luz e João Barbosa são Didi e Gogo, dois maltrapilhos aprisionados no tempo, a aguardar pela vinda de alguém que nunca chega.

Há como que um sentido de urgência em continuar a fazer e a ver os clássicos. Esta é a crença de António Pires que, em vésperas de estrear a sua visão de À espera de Godot, confessa estar cada vez mais convicto de que “o tempo funciona em textos como este de uma forma muito particular, transformando-os, tornando-os mais próximos de nós”. Para o encenador, que leva agora ao palco do Teatro do Bairro esta peça incontornável de Samuel Beckett, “há textos que, de um ponto de vista humanista, são capazes de promover reflexões essenciais na formação dos seres humanos. Ali no palco, espelham aquilo que somos, e quero acreditar serem capazes de evitar que cometamos tantos disparates”. Este é, seguramente, um deles.

“A primeira motivação para o fazer foi desconfiar que muitas das pessoas que ouço falarem no Godot, provavelmente, nunca terão visto a peça”, explica Pires. Depois, olhando para o texto à luz dos nossos dias, “foi reconhecer nela situações que parecem dar uma leitura para coisas que se estão a passar”. O encenador exemplifica com a personagem Lucky (aqui interpretada por Mário Sousa): “quando comecei a reler a peça e cheguei à cena em que o escravo Lucky surge, vi imediatamente estes [novos] escravos que aí andam de bicicleta com aquelas coisas às costas”.

Como alguém disse, À espera de Godot, texto de finais da década de 1940, logo a seguir à II Guerra Mundial, é “uma peça em que nada ocorre, duas vezes”, e isso é surpreendentemente divertido. Nela, dois pobres coitados, Vladimir/Didi (Adriano Luz) e Estragon/Gogo (João Barbosa), esperam à volta de uma árvore por alguém de nome Godot. Como longa se torna a espera, os dois vão discorrendo sobre quem são, sobre o absurdo da vida e até sobre o próprio tempo onde parecem estar enclausurados. A dado momento, chegam Pozzo (Francisco Vistas) e o seu escravo Lucky que, embora proporcionem cenas mirabolantes e perturbadoras, acabam por ajudar, como salienta Didi, o tempo a passar.

Ao entardecer, entra em cena um rapaz (Carolina Campanela) anunciando que Godot não poderá comparecer, mas que volta, com toda a certeza, no dia seguinte. E, assim, com algumas desconcertantes variações, tudo volta ao início, com Didi e Gogo debatendo-se com o tormento do tempo que passa sem que Godot apareça.

A espera, o vazio ou a falta de sentido na existência são temas sérios que estão associados a À espera de Godot – Pires salienta mesmo a hipótese de suicídio que os dois protagonistas admitem a dado momento. Contudo, a peça não deixa de ser “uma comédia” protagonizada por “dois palhaços”, sem que isso lhes retire humanidade. Antes pelo contrário, “é a leveza, uma certa ligeireza e o olhar do próprio palhaço que lhes confere o humano”.

Assim, crê o encenador, lembrando que, atualmente, há uma produção de À espera de Godot na Broadway (encenada por Jamie Lloyd, com Keanu Reeves e Alex Winter), “um texto universal e divertidíssimo” como este “deve ser visto sem complexos ou preconceitos”. “Não é preciso ser erudito para o compreender”, garante. Apesar da agonia do tempo, À espera de Godot “são jogos de palhaços, de palavras, de atores a dizerem coisas muito simples”.

A partir da tradução de José Maria Vieira Mendes, o espetáculo tem cenografia de Alexandre Oliveira, desenho de luz de Rui Seabra e som de Paulo Abelho. Estreia a 1 de outubro, mantendo-se em cena até 2 de novembro.