Cinco mulheres suspensas na espera

Artistas Unidos apresentam "Estava em casa e esperava que a chuva viesse", de Jean-Luc Lagarce

Cinco mulheres suspensas na espera

Duas décadas depois de ter encenado As regras da arte de bem viver na sociedade moderna, Andreia Bento regressa ao teatro delicado e sofrido de Jean-Luc Lagarce. Em Estava em casa e esperava que a chuva viesse, uma avó, a mãe e três filhas encontram-se suspensas no tempo à espera do irmão mais novo que partiu. Um dia, ele regressa, mas tão só para morrer.

Se, à semelhança de alguns jornais ou revistas, nos coubesse apontar a quem se destina a mais recente produção dos Artistas Unidos, bastaria apenas socorrer-nos da opinião abalizada de Andreia Bento: Estava em casa e esperava que a chuva viesse é “uma peça para quem gosta de palavras, sentimento e atores.”

Arrebatada pelo texto desde a primeira vez que o leu, há quase 20 anos, a encenadora fala de “uma ligação inexplicável”, e do modo como desde daí lhe “ecoam palavras que parecem tocar no mais íntimo de nós”. A escrita de Jean-Luc Lagarce, classificada por muitos como “delicada, sofrida, dolorosa”, tem o mistério de se tornar “uma espécie de assombração.”

Tal como as “cinco mulheres suspensas, em casa, à espera do filho pródigo”, também Andreia Bento aguardou pelo momento de fazer a peça de Lagarce. Em 2016, para a rubrica Teatro sem Fios da Antena 2, os Artistas Unidos gravaram-na, e Andreia Bento interpretou a Filha Mais Velha (é assim, quase anónimas, que o dramaturgo francês apelida as suas personagens).

Mas, isso não era suficiente. A atriz e encenadora sonhava levá-la para o palco e, honrando uma ideia de casa – a que não é estranha a vontade de homenagear o mestre Jorge Silva Melo, autor de um livro intitulado A mesa está posta –, materializar em cena as figuras da Avó (Antónia Terrinha), da Mãe (Gracinda Nave), da Filha Mais Velha (Maria Jorge), da Filha do Meio (Raquel Montenegro) e da Filha Mais Nova (Sofia Fialho), e da casa que aguarda, algures no tempo e no espaço, a chegada do filho pródigo.

Assim, cumprindo uma vontade adiada, Estava em casa e esperava que a chuva viesse chega ao Teatro da Politécnica como o espetáculo de abertura da temporada 2023/2024 dos Artistas Unidos.

Sentimento e atrizes em estado de graça

Se, em Lagarce, “a ação é a palavra”, o seu teatro é o da “procura do outro, do encontro e do desencontro”, nota a encenadora. O grande mistério desta peça parece estar no porquê das cinco personagens femininas (as únicas em cena, embora se sinta, a cada momento, a presença espectral não só do filho, como do pai defunto) se terem resignado numa espera que parece eterna. Aquilo que sabemos, e que o próprio autor deixou escrito a esse propósito, é que “elas esperavam-no há anos, sempre a mesma história, e nunca pensaram que o voltariam a ver”. Um dia, ele, o Irmão Mais Novo volta a casa, mas é para morrer.

Neste vazio, percetível nos muitos “silêncios que vão pontuando a relação que elas estabelecem entre a vida e a morte”, cada uma partilha, em monólogos intensos e vividos – são episódicos os diálogos ao longo da peça -, a sua relação com a espera e o abismo em que mergulharam quando, por fim, essa mesma espera, que as deixou suspensas no tempo, terminou. E, pergunta-se: ainda haverá tempo para elas?

Na tristeza que atravessa toda a peça, o autor não responde, talvez porque, tal como muitos a entendem, Estava em casa e esperava que a chuva viesse é “a peça-testamento” de um homem que sabe que está a morrer (Lagarce tinha SIDA e faleceria em 1995, um ano após a escrita do texto). Mas, nas brechas de luz que irrompem, amiúde, nos olhares das irmãs, talvez haja um lampejo de esperança no horizonte.

E é, nessa tão notável gestão do tempo da perda e da desilusão com o das boas memórias e da crença, que sobressai o exemplar trabalho das atrizes. Como observa Andreia Bento, “este é um espetáculo no fio da navalha, onde é necessário gerir emoções e ter um imenso rigor emocional e físico.”

A partir da tradução de Alexandra Moreira da Silva, o espetáculo conta com cenário e figurinos de Rita Lopes Alves e luz de Pedro Domingos. Em cena até 21 de outubro.