entrevista
Maria João Luís
"De algum modo, esperamos que uma 'Mãe Coragem' nos mostre aquilo que também nós somos."

Poucos dias antes das tropas nazis invadirem a Polónia e desencadearem o mais sangrento conflito da história da humanidade, Bertolt Brecht, dramaturgo e poeta alemão, concluía no exílio a primeira versão de Mutter Courage und ihre Kinder, peça ambientada durante a Guerra dos Trinta Anos, no século XVII, protagonizada por uma vendedora ambulante, Anna Fierling, e os seus filhos. Pouco menos de um século depois da estreia em Zurique, em 1941, numa Europa em guerra, António Pires encena este grande sucesso do teatro brechtiano, tendo no papel principal aquela que é, muito provavelmente, a melhor atriz portuguesa da sua geração: Maria João Luís.
Entre a estreia no Centro Cultural de Belém (CCB), no mês passado, a passagem pelo Festival de Almada (a 17 e 18 de julho) e a temporada nas Ruínas do Carmo (entre 24 de julho e 17 de agosto), a atriz falou-nos dos desafios de ser a Mãe Coragem, da tenebrosa atualidade da peça e da urgência de um teatro que intervenha na sociedade.
Olhando aos primeiros seis meses do ano, e para todos os projetos em que tens estado envolvida (duas encenações com o “teu” Teatro da Terra), fazer uma Mãe Coragem é, no mínimo, um desafio de uma exigência acrescida…
De uma exigência tremenda. Cheguei mesmo a pensar que não ia conseguir, mas, quando nos entregamos com amor e paixão e uma imensa dedicação, percebemos que conseguimos realmente fazer tudo.
Porquê esta simultaneidade, com Os Caranguejos de Istambul [de António Cabrita] estreado no Seixal no mesmo fim-de-semana em que subia ao palco do CCB a Mãe Coragem?
Deveu-se a uma antecipação de datas do CCB [coprodutor com a Ar de Filmes/Teatro do Bairro de Mãe Coragem]. Há bastante tempo que estava previsto fazer este espetáculo com o [António] Pires. De súbito, vi-me a ensaiar de manhã e de tarde a Mãe Coragem, e à noite a dirigir Os Caranguejos.
Como é que surgiu a oportunidade de interpretar a Anna Fierling?
Digamos que foi uma conjugação de vontades, minha e do Pires, pessoa pela qual tenho uma admiração profunda, tanto como ser humano como encenador. Muitas atrizes amigas perguntavam-me recorrentemente: “mas como é que ainda não fizeste a Mãe Coragem? Tens de fazer… Só te falta a Mãe Coragem…” A Lia Gama passava a vida a dizer-me isto [risos].
Mas, como é que as vontades se conjugaram…
Em 2022, fiz com o Pires A Última Refeição [de António Cabrita, estreado no Teatro São Luiz], um espetáculo muito bonito em que interpretava a Helen Weigel, atriz, diretora do Berliner Ensemble, mulher de Brecht, e que também escreveu textos com ele. Era um monólogo em que a atriz cozinha um frango na púcara na esperança de ressuscitar o marido, fazendo ao mesmo tempo um balanço da vida deles. Esse espetáculo correspondia ao meu desejo de falar da Weigel, que fez todas as grandes personagens que o Brecht escreveu, como a Mãe Coragem. Para além disso, tal como a Weigel, eu já tinha feito uma “mãe coragem” na peça do Brecht que antecedeu a Mãe Coragem, propriamente. Fiz a Leocádia Begbick, de Um Homem é um Homem, na Cornucópia [2005, encenação de Luís Miguel Cintra], uma vivandeira que andava, tal como a Anna Fierling, com os regimentos e que é um embrião da personagem da Mãe Coragem. E é neste contexto que eu e o Pires decidimos fazer a peça.
Quem é, para ti, a Anna Fierling?
Não é uma heroína clássica, longe disso. Ela é extremamente humana e isso é um reflexo da genialidade do Brecht. É uma mulher que tem muitos defeitos, que procura sobreviver a qualquer custo. No fim, mesmo sem os filhos, ela continua a arrastar a carroça como quem arrasta a sua própria sobrevivência, no encalço de voltar a encontrar o filho que todos nós já sabemos estar morto. É uma mulher dura, embora, como se diz a dado momento, dentro dessa dureza exista um coração. Só que isso jamais poderia ser mostrado naquele cenário de guerra e de terror. Portanto, ela revela a ternura nos pequenos passos de intimidade. E isso é tão bonito, aqueles pequenos gestos…

Que referências convocaste para construir a personagem?
Estão lá as mulheres duras da minha família. As minhas tias, a minha mãe, até as tias do lado do meu pai, todas elas mulheres com alguma dureza. Na Anna Fierling estão lá muitas das suas expressões porque todas fazem parte das mulheres duras universais. No entanto, essa dureza era uma forma de manifestar muitas vezes o amor, o cuidado e a proteção.
E a Anna é uma protetora incansável dos filhos…
Ele é mãe. Ela pretende evitar a todo o custo que a mesma guerra que a sustenta atinja os seus filhos. Só que, como lhe diz o Sargento, não se pode viver da guerra e manter os filhos fora dela. Isso é impossível.
Consta que Brecht se irritava com a empatia que Anna Fierling causou desde sempre no público, tendo mesmo reescrito muitas das suas falas para que se enfatizasse o seu egoísmo e a inversão de valores que a guerra causa e que ela preconiza. Mas, isso nunca aconteceu efetivamente…
Ela é uma mulher numa situação limite e, provavelmente, parte de nós, hoje, tal como noutros tempos, estamos numa situação limite. De algum modo, esperamos que uma Anna Fierling nos mostre aquilo que também nós somos. Ela é uma mulher rude e egoísta, verdade, mas é também uma mulher sábia, dona dessa sabedoria que vem da dureza da vida. A peça é uma observação da guerra, com um enredo muito fácil de compreender, quase didático. Olha para o modo como as pessoas estão na guerra, sobretudo os pobres. E os pobres precisam de coragem, ou como ela diz, até para se levantarem cedo precisam de coragem. E, sim, muitas vezes têm mesmo de ser carrascos uns dos outros. É terrível, é a guerra. E é tão assustador porque é demasiado atual…
E perturbador, porque na maior parte do tempo da peça esquecemos que a ação se passa no século XVII ou que o texto foi escrito no dealbar da Segunda Guerra Mundial. Podia ser agora.
Todos os dias temos a confirmação de que cada palavra desta peça faz sentido hoje. É realmente assustador. Podíamos estar a fazer a Mãe Coragem agora e pensar “ah, como isto era; que terror viveu esta gente!” Infelizmente, isto entra-nos todos os dias casa dentro nas imagens terríveis de um mundo em completo caos e nas histórias trágicas de tantas “mães coragem”.
Sendo esta uma peça anti-guerra, e quando todos os dias testemunhamos que a guerra tende a substituir a paz, se pudesses, que líderes mundiais convidarias para assistir a esta Mãe Coragem?
Convidaria muitos, certamente, mas consciente de que o que vissem em palco não os incomodaria nada. E é isso é que é frustrante, não é? É tão triste sentir isso, saber que os grandes líderes mundiais estão alheados dos reais problemas das pessoas. Não tenho qualquer esperança que a peça lhes pudesse ensinar alguma coisa, até porque tudo o que está nela, eles sabem. Sabem, e têm consciência disso. O que é ainda mais grave.
O elenco de atrizes que já fez a Mãe Coragem é impressionante, desde a Helen Weigel, de quem já falámos, à Hanna Schygulla, passando por nomes como Simone Signoret, Maria Casarès ou Liv Ullmann, entre tantas outras estrelas. Em Portugal, esta personagem deu a Eunice Muñoz uma interpretação que ainda hoje é muito falada. Viste?
Vi, sim. A encenação do Joaquim Benite com a Teresa Gafeira não vi, mas a da Eunice pelo João Lourenço, sim. Aquilo que recordo é que não tem a ver com o que faço. Era também um espetáculo muito diferente. Contudo, há algo que tanto eu como a Eunice temos em comum: a entrega ao texto e a verdade que pomos em cena. Porque não dá para ir a um papel destes com rodriguinhos, tem de ser exatamente aquilo que é, ou seja, tem de se sentir crueza em cada palavra. Recordo isso na interpretação da Eunice. E, também, a cena final, pungente, em que ela pegava na carroça sozinha e vai por ali fora. Era de uma beleza…
Como é que a atriz gere toda essa emoção e entrega empregue na interpretação de uma personagem como esta?
Devo dizer que, no final, se sinto que me correu bem, fico prostrada. Todas as personagens que exigem mais de mim me deixam assim. Acontece algo curioso que é irem ter comigo, falarem-me, eu responder, parecer normal, e a seguir nunca mais me lembrar. Há ali um tempo a seguir ao espetáculo que é da minha própria responsabilidade. Não sei se é uma reflexão enquanto artista, uma introspeção sobre o que fiz, sobre o que experimentei, sobre as coisas que resultaram ou não resultaram. Mas só acontece com determinados textos…
Para além deste, recordas outro?
Sim. Por exemplo o Stabat Mater, do Antonio Tarantino [encenação de Jorge Silva Melo, estreado em 2008, no Teatro São Luiz].
E nas mulheres burguesas do Tennessee Williams, do Ibsen ou do Albee?
Já fiz muitos bons papéis, pá! [risos] Foram experiências ótimas, com pessoas extraordinárias, mas a entrega a uma coisa como esta é diferente. Quando interpreto mulheres de uma certa burguesia, como nas peças do Tennessee Williams ou do Albee, faço-o com prazer, mas é outro teatro. Fazer o Stabat Mater ou um Brecht tem importância política, porque sentes que é um teatro que intervém na sociedade. Intervém mesmo.
Achas que é um teatro capaz de agitar, de perturbar?
Quanto mais bem feito é, mais perturba.
Há algum outro autor a quem, de repente, reconheças essa capacidade?
O Shakespeare, claro. Adorei fazer o Tito Andrónico, com o Luis Miguel [Cintra], na Cornucópia [2003]. É incisivo, perturbador, ressoa em nós.
Que personagem te falta fazer?
Estamos a falar em Shakespeare… A Lady Macbeth. Se houver por ai um encenador que o queira fazer… [risos]