Uma faísca na escuridão

Os Possessos estreiam ‘Burn Burn Burn’ na Culturgest

Uma faísca na escuridão

Com o livro Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, como inspiração, Catarina Rôlo Salgueiro e Isabel Costa criaram Burn Burn Burn, um espetáculo que olha para a nossa sociedade cada vez mais polarizada e menos ligada à literatura. Que ferramentas nos faltam para o diálogo e para a compreensão do outro? Como se exercita o músculo do pensamento?

Exemplos não faltam e Catarina Rôlo Salgueiro e Isabel Costa enumeram-nos ao microfone. Dentro de uma cabine de som, a gravar um podcast, recordam-nos os livros queimados em Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, mas também o que aconteceu na Biblioteca de Alexandria, na Inquisição Espanhola, na Alemanha Nazi, na ditadura de Pinochet ou, ainda, nos atuais Estados Unidos da América. Burn Burn Burn, a mais recente criação de Os Possessos, estreia-se na Culturgest a 30 de outubro e aí fica até 1 de novembro, com um olhar sobre esse hábito recorrente de fazer arder as palavras com as quais não se concorda.

“A nossa ideia para este espetáculo começou pelo desconforto que sentimos em 2025 por vivermos numa sociedade cada vez mais polarizada e pela dificuldade que há em conversar, no nosso trabalho, na sociedade em geral, mas até, às vezes, entre amigos e familiares. Essas discussões cada vez mais acesas e a dificuldade de diálogo foram o ponto de partida. A ideia de inflamação e a forma como passa das decisões políticas para dentro das nossas casas e das nossas vidas”, conta Isabel Costa.

Daí, chegaram a Fahrenheit 451 – o romance distópico publicado em 1953, cujo título remete para a temperatura em que o papel entra em combustão, e que fala de um futuro onde os livros são proibidos e queimados pelos bombeiros, porque atentam ao bem-estar social. “Embora o mundo tenha mudado, seja nos anos 50 ou seja em 2025, somos seres humanos a pensar”, nota Isabel.

Burn Burn Burn não é, no entanto, uma adaptação da ficção de Bradbury, apenas se inspirando no seu enredo. Guy Montag, o bombeiro protagonista da história, entra em cena, tal como Clarisse McClellan, a jovem sonhadora amante de livros, ou Capitão Beatty, o chefe dos bombeiros, mas todos se fundem com as personagens criadas por Catarina e Isabel, que vemos chegar, uma a uma, a um peculiar clube de leitura. O enredo tanto se aproxima do do livro por eles escolhido para ler em voz alta como dele se afasta, indo buscar ideias a muitos outros autores e a comportamentos que reconhecemos dos dias de hoje.

Paralelamente, Isabel e Catarina gravam, mesmo ali ao lado, um podcast que serve de comentário e de reflexão a tudo o que acontece no palco e no mundo, falam de inflamações de discursos e de papéis. “Será que há livros que podem ou devem ser queimados”, interrogam-se. Não republicar um livro é uma forma de censura? E quem toma essa decisão? Afinal, quem define o que é ofensivo? São muitas as perguntas que vão deixando no ar. “Onde está o mal? Será que está em quem escreve ou será que está em quem lê?”, questionam, a propósito do julgamento de Charles Baudelaire, em 1857, acusado e condenado por indecência e ofensa à moral pública e religiosa, pela publicação de As Flores do Mal.

“Às vezes, o que faz falta são ferramentas para as pessoas poderem dialogar. Porque estamos a ficar cada vez menos ligados à literatura e isso tira-nos capacidade até de discutir”, afirma Catarina. Isabel reforça: “Durante os ensaios, falámos muito da ideia de músculo como algo que não é só físico. Temos de viver numa sociedade musculada para discordar, para que as pessoas não entendam as suas opiniões como leis. Também é uma questão de sobrevivência da nossa convivência em comum. É uma questão lógica e política.”

Em cena, sobressai o ridículo de uma sociedade sem livros (e humor não falta ao espetáculo). Beatriz Brás, João Pedro Mamede, João Pedro Vaz, Leonardo Garibaldi, Leonor Buescu e Tomás Alves agitam argumentos e agitam-se uns aos outros. Ali, lembra-se a forma “como os livros podem confundir as pessoas”, como geram controvérsia, como “um livro é uma arma carregada na casa do lado” e como se torna necessário ser “defensor da paz de espírito”. Mas, Clarice há de perguntar: “Não é incrível quando nos surpreendemos uns aos outros?”. E há de garantir que os livros não nos dão certezas em segundos, mas fazem-nos duvidar, questionar, puxar pela cabeça.

“Pode ser contraditório com os tempos em que vivemos, mas achamos que é um espetáculo esperançoso, apesar de tudo”, sublinha Catarina. Por isso, ouviremos as palavras de Salman Rushdie: “Queimar um livro não significa destruí-lo. Um minuto de escuridão não nos tornará cegos.” “Se calhar não podemos mudar as coisas agora, vão ser 10 ou 20 anos assim, mas podemos impulsionar antes do salto, preparar a corrida ou a caminhada, para no momento certo muscularmos tantos argumentos que vamos conseguir debater lá à frente. É a democracia a funcionar com as suas falhas imensas. O que podemos fazer? Muscular-nos de ideias para lutar a seguir”, defende Isabel.

Ao longo do espetáculo, a voz e a guitarra de Johnny Cash hão de aparecer duas vezes, primeiro com Ring of Fire (e será impossível não esboçar um sorriso) e, depois, com Walk the Line, deixando no ar esse tom otimista. Mantenhamos o olhar atento e não nos desviemos da linha que queremos seguir – de livros nas mãos, continuemos em frente. “Só precisamos de ver uma faísca na escuridão”, diz uma das personagens de Burn Burn Burn.