sugestão
Os livros de outubro
Oito novas proposta de leitura

Poesia, novela, romance, conto e ensaio, a par de obras dedicadas ao cinema, arquitetura e urbanismo e à gastronomia, preenchem as nossas sugestões de livros para o mês de outubro.
José Cardoso Pires
Lavagante
José Cardoso Pires (1925-1998) regressou, dez anos após a sua morte, com Lavagante, novela inédita que nos devolveu o seu estilo único e aparentemente simples (produto de um profundo labor sobre a própria escrita) e a sua capacidade soberana de descrição da sociedade portuguesa durante a ditadura de Salazar. A observação atenta das leis do reino animal – o lavagante alimenta o safio no fundo das águas com paciência e obstinação vendo-o engordar até ser incapaz de sair da toca; nesse momento, devora o prisioneiro que alimentou com estratégica perversidade – permitiu-lhe apreender melhor a natureza do comportamento humano do par amoroso central: Daniel, jovem médico oposicionista ao regime, e Cecília, bela estudante universitária apreciadora de jazz e de Henry Miller. A publicação desta pequena novela trouxe-nos à memória a calorosa saudação que um crítico dirigiu a O Jardim do Paraíso, romance póstumo de Hemingway – “esse viajante das mortes” que Cardoso Pires tanto admirava – editado nos EUA, em 1987: “Ler este livro … é como entrar num café e encontrar um velho amigo que julgávamos morto há muitos anos… É assim tão excitante, tão vivo, e tão surpreendente”. Reedição por ocasião da estreia da adaptação cinematográfica da obra por Mário Barroso, no centenário do nascimento de José Cardoso Pires. LAE Relógio D’Água
Albino Forjaz Sampaio
Volúpia
“Em França a a arte da cozinha é uma Arte, a nona arte. Todos lhe rendem culto, todos trabalham por enriquecê-la”. Nesta obra dedicada à gastronomia, Albino Forjaz Sampaio, escritor, polemista e olissipógrafo, reflete sobre a relação entre a literatura e a “arte de comer” evocando eminentes gastrónomos como Eça de Queirós, Ramalho Ortigão ou Fialho de Almeida, e empreende uma nutritiva viagem pelas “cozinhas de todo mundo”: portuguesa, brasileira, espanhola, francesa, alemã, húngara, africana (árabe e indígena), ou ainda pelos confins das cozinhas exóticas. Sobre a cozinha inglesa afirma, com apurado sentido crítico, mas com equidade: “A Inglaterra não foi nunca um país de requintes gastronómicos. Mas espelho do modo de ser inglês, tem uma cozinha sólida onde tudo é positivo e é dos países onde melhor se come, não molhos nem composições feitas para enganar a fome, mas carne, peixe, vegetais, comida suculenta e a valer”. Com uma escrita requintada, o autor conta um sem número de episódios, com que enriquece os seus relatos, tão suculentos como as iguarias que descreve, fazendo de Volúpia um magnífico exemplo de “literatura vitaminada e sadia”. Uma fusão entre sabor e palavra “com a mesma concordância plástica da mão com a luva, do assunto com a denominação.” LAE E-Primatur
Violaine Bérot
Como Animais
A obra inspira-se numa experiência vivida pela própria autora numa quinta nos Pirenéus. Aí criou animais e recebeu crianças de instituições psiquiátricas, cuja ligação se revelou algumas vezes extraordinária e incompreensível. Como animais é um conto da montanha sobre o direito a viver à margem da sociedade. Mariette vive com o filho, a quem chamam o Urso, a vários quilómetros de uma aldeia isolada nos Pirenéus. Quando um caminhante avista uma menina de cerca de seis anos numa gruta, a polícia leva a cabo uma investigação para descobrir quem é a criança. São interrogadas várias pessoas que, de diferentes formas, tiveram contacto com a família. “Tudo porque se teria descoberto uma criança selvagem. Mas não existem crianças selvagens! Uma criança é uma criança, e ponto final.” Entre ser filha de Mariette, ser filha do Urso, ter sido roubada, as opiniões dividem-se, mas são unânimes em reconhecer que a família nunca fez mal a ninguém, que nunca foi agressiva. Fica, então, a dúvida: “O que leva as pessoas a fazerem mal a quem não se meteu com ninguém? Porque é que se estraga sempre tudo o que funciona?” Violaine Bérot (n. 1967) estreou-se na ficção em 1994, com Jehanne, e é autora duma obra singular, dominada por mulheres determinadas e pelas violências exercidas contra elas. SS Antígona
Pedro Mexia
Cinquenta cinquenta
Quando completou meio século de vida, Pedro Mexia deu ao prelo este livro de poemas inéditos, que sugere a páginas várias poder tratar-se de um (quase) autorretrato, de uma (hipótese de) autobiografia: “Chamem-me já o raio do velho, / sou-o desde tão novo. / Eis-me então agora a dizer / fazer tentar tudo aquilo / que desaconselharia a um filho / que Darwin vetou”. Cinquenta cinquenta pela metade da vida, mais vazia que cheia (de ilusões, certamente), num balanço antecipado, se pudesse haver antecipação para quem escreve que já se sentia um velho desde novo. O acerto de contas é aqui com o próprio autor, numa fase em que superou pela idade “quase todos aqueles que admira”. O registo pessimista, a sensação de fracasso, o tom autodepreciativo são atributos da poesia de Mexia desde sempre, como também é o diálogo com nomes da música, cinema e literatura, citados ou tão-só nomeados, por vezes com chave humorística como se fosse recurso de aflitos: “Stendhal sofria / porque Mathilde Dembowski / o achava feio. / A síndroma de Stendhal / consiste em sofrermos / quando vemos o belo. / Eis, amigos, a literatura.” RG Tinta-da-China
João de Melo
A Nuvem no Olhar
O Meu Gémeo que Sou Eu narra a experiência de um homem que teve um irmão gémeo que morreu cedo, levado por uma doença misteriosa, e lhe deixou uma “condição de dupla pessoa”, a “noção de uma ausência omnipresente”. Este é um dos dez contos reunidos por João de Melo, no ano em que celebra meio século de atividade literária, com o propósito de criar uma autoantologia da sua ficção curta. Duas destas narrativas eram ainda inéditas em livro, as restantes foram selecionadas dos dois primeiros volumes de contos que publicou, todas elas reescritas com o objetivo de estabelecer a sua versão definitiva. Relações intrafamiliares, retratos mais ou menos caricaturais de políticos, representações do meio docente e da intelectualidade em geral ou o relato de uma viagem como revelação essencial são alguns dos temas desenvolvidos nestas histórias tão diferentes entre si. O Tríptico dos Barcos, o conto mais longo deste livro – podendo mesmo considerar-se uma novela curta – pode entender-se como uma reflexão sobre os destinos da “pátria” (“um país pequeno, com forma de urna e sem memória de nada”) através da perspetiva de três membros de uma família lisboeta acerca do “fim do nosso ciclo colonial africano e o evoluir do processo português posterior à descolonização”. LAE Dom Quixote
Francisco Keil do Amaral
Lisboa – Uma Cidade em Transformação
Francisco Keil do Amaral, arquiteto e urbanista, escreveu em Lisboa, uma Cidade em Transformação, originalmente publicado em 1969, sobre os agentes da pressão imobiliária e a construção civil na capital: “têm erguido e afeiçoado Lisboa, à imagem dos seus interesses, apetites e incultura, acumulando fortunas e problemas, Fortunas para si próprios. (…) problemas para os outros – para a Cidade”. E aponta três deles: a construção de “prédios de rendimento, com habitações minúsculas e rendas maiúsculas”, o pejar de “terrenos com edificações maciças, compactas, arregimentadas” e a insistência em “fazer casas só para gente rica”. Palavras visionárias ou uma cidade que, cinco décadas depois, se mantém incapaz de resolver os seus problemas? Esta obra, de acordo com o autor, resultante de “escritos feitos ao longo de uma quinzena de anos”, produz uma reflexão inovadora, de relevância intemporal, sobre o desenvolvimento sustentável das cidades e a relação entre o espaço edificado e os seus habitantes. Francisco Keil do Amaral defende a necessidade de uma cidade estruturada, harmoniosa e sobretudo mais humanizada. A sua reedição possibilita o acesso a novos leitores de um texto notável, um dos mais importantes do pensamento português sobre o urbanismo de Lisboa do século XX. LAE Contexto
Eduardo Geada – O Olhar do Desejo
No último mês de maio, a Cinemateca Portuguesa levou a cabo a retrospetiva integral da obra para cinema e televisão de Eduardo Geada (n. 1945). O ciclo recebeu por título Eduardo Geada, O Olhar do Desejo, o mesmo que surge inscrito a negro na capa sobre um vermelho vivo, que nos atrai como pedindo que acariciemos a superfície do objeto antes de percorrermos livremente as suas cerca de 300 páginas. A organização do volume coube a Ricardo Vieira Lisboa, que justifica a polaridade do desejo neste contemporâneo do Novo Cinema Português, dizendo “… passar de crítico a cineasta é, no caso de Geada, passar do desejo do olhar ao olhar do desejo. Isto é, é passar o gozo de ver para o ver enquanto gozo”. O catálogo encontra-se dividido em três partes (Aprendizagem, Prática, Recapitulação) que correspondem aos capítulos do filme inaugural do realizador, Sofia e a Educação Sexual (1974), obra disruptiva sobre os preconceitos sexuais da sociedade portuguesa durante a ditadura. A uma pequena antologia de textos críticos de Eduardo Geada, seguem-se análises aos seus principais filmes e outros documentos interessantíssimos sobre o realizador e o seu tempo, e alguns ensaios que dão conta da robustez intelectual que caracteriza a sua relação com a história do cinema. RG Cinemateca Portuguesa
Virginia Woolf
As Mulheres e a Ficção
Recorrendo ao monólogo interior, à reorganização temporal dos factos para corresponderem à experiência interna do tempo no(s) protagonista(s) e à justaposição de múltiplos pontos de vista, Virginia Woolf introduziu um estilo de narrativa subjetiva que recusava o narrador omnisciente característico da literatura realista do século XIX. A escritora nasceu em Londres, em 1882, cidade onde encontramos as suas personagens principais: Mrs. Dalloway nas 24 de um dia em que sai para comprar flores; Orlando na sua existência secular de homem e mulher. Neste artigo, Woolf investiga as razões pelas quais as mulheres não escreveram de forma contínua antes do século XVIII. Objetivo dificultado pelo facto de a história de Inglaterra ser “a história da linhagem masculina” e de sobre as mulheres só sabermos “o nome, a data do casamento e o número de filhos”. Apresenta as leis e os costumes como principais responsáveis: só no início do século XIX, em Inglaterra, as mulheres passaram a ter “algum tempo livre” e “alguma educação”. Termina profetizando uma “época de ouro”, “em que as mulheres terão aquilo que há tanto tempo lhes é negado – tempo livre, dinheiro e [inevitavelmente] um quarto só seu”. LAE Relógio D’Água