entrevista
Vicente Alves do Ó
"Foram princípios, poder-se-á dizer quase políticos, que construíram 'Portugueses'"

Vicente Alves do Ó retrata o antes, o durante e o pós-25 de Abril no mais recente filme Portugueses. A história é contada através de 13 temas musicais assinados pelos mais importantes cantautores portugueses. O projeto pioneiro, interpretado por um elenco de 50 atores e atrizes, com direção musical de Lúcia Moniz e banda sonora e produção musical de Fred Ferreira, chega a 5 de junho às salas de cinema.
O 25 de Abril tem sido frequentemente retratado no cinema português, mas nunca em estilo musical. Como surgiu a ideia de usar a música como fio condutor?
Já se fizeram uma série de coisas sobre o 25 de Abril e já foram retratados, digamos assim, os momentos-chave e as personagens-chave. Sentia que ainda ninguém tinha falado, ou encontrado uma ideia para falar sobre a música de intervenção portuguesa e os grandes cantautores que, na minha opinião, continuam a ser os grandes compositores e letristas da música portuguesa do século XX. Sinto que estes músicos ultrapassam a questão musical ao fazerem uma coisa que a arte, volta e meia, tem de fazer, que é posicionar-se face ao mundo, ao país e à política. Muitas vezes é mais fácil mudar ou educar as pessoas através da arte do que com debates políticos. Queria fazer alguma coisa com os cantautores e com as suas músicas, mas não os queria a cantar no cinema. Gostava que fossem todas as pessoas anónimas, que ainda não foram referidas nas obras que já se fizeram sobre o 25 de Abril, a cantar estas canções.
Depois de tantos filmes com figuras reais, neste não há nenhuma personagem conhecida ou famosa…
Só temos uma pessoa que se pode dizer famosa no filme, a Celeste Queiroz. Mas a Celeste é também uma anónima, uma espécie de arauto de todos os anónimos. Foi intencional, é como se estivesse ali uma representante do povo. Queria perceber como é que estes anónimos viveram o antes, o durante e o depois do 25 de Abril. Fui congeminando esta ideia ao longo dos anos, até que comecei a trabalhar num guião com uma estrutura que é, aparentemente, muito pedagógica. Queria que fosse um filme muito fraternal e igualitário. Quando as pessoas me perguntam quem é que são os atores principais, respondo que são todos. Então quem é que são os secundários? São todos. Somos todos principais e secundários na vida uns dos outros. Neste filme vou a muitos mundos, a muitas visões, a muitas formas de ser, a muitas pessoas anónimas, e é através delas que ouvimos as canções, é dentro das suas vidas que estas canções existem. As canções não surgem como momentos musicais a que estamos habituados a ver no cinema dito musical. As canções vêm de um momento de intimidade de uma personagem.
A Lúcia Moniz e o Fred Ferreira escolheram os temas musicais ou o Vicente já sabia quais incluir no filme?
O guião já estava escrito com as músicas definidas. Confesso que não era um grande conhecedor da música de intervenção portuguesa. Olhei para as discografias dos cantautores e durante semanas ouvi as suas músicas no Youtube. Eram tantas… Gostei de muitas. Percebi que não podia partir das músicas para escrever o guião, porque acabaria por me perder. Então, achei que tinha de fazer o contrário, isto é, decidi primeiro as histórias que queria contar e depois encontrava a música para essas histórias. Era muito importante ter a maior parte dos cantautores portugueses representados e não podia usar mais do que uma canção por artista. O único que tem duas canções é o Zeca Afonso, porque o tema Grândola, Vila Morena, um tema óbvio, surge num contexto à parte. Depois descobri uma coisa muito triste, e qualquer pessoa do mundo da música que leia isto pode rebater imediatamente esta afirmação, porque sou um leigo, mas não encontrei muitas mulheres cantautoras, há intérpretes, mas compositoras não. Mas consigo ter a Ermelinda Duarte, com o Somos Livres.
Mas a Lúcia Moniz e o Fred Ferreira também ajudaram?
A Lúcia acompanhou, essencialmente, as vozes. Também falei com os pais da Lúcia, o Carlos Alberto Moniz e a Maria do Amparo, sobre o projeto. Mas, acima de tudo, queria que eles validassem a minha ideia. Perguntei-lhes se a conjugação das histórias e com aquelas canções fazia sentido. Estava disponível para ouvir as propostas deles, caso não concordassem. O Fred entra como um mágico. Disse-lhe que queria aquelas canções e que gostava que fosse ele a adaptá-las e a trabalhar todo o lado instrumental que o filme necessitasse. Queria que ele desse um cunho pessoal, mais atual. Não é modernizar as canções, até porque tínhamos feito um acordo com os herdeiros e com os autores que definia que tínhamos de respeitar completamente a melodia. Ele dá uma transpiração do tempo de agora.
Não deve ter sido fácil escolher os temas…
Muitas vezes escrevo coisas por ideias que tenho, ou por vontades. Aqui foi por princípios. O princípio de criar um guião em que falo das pessoas que não estão representadas. O princípio de ter todos os atores protagonistas no filme. O princípio de ter o máximo de cantautores possíveis no filme e cada um representado com uma canção. Foram princípios, poder-se-á dizer quase políticos, que construíram o filme. Foi este jogo de consciência política, de princípio político, de fazer um filme que ainda ninguém fez, de dizer coisas que não se dizem normalmente na ficção portuguesa porque se tem medo, e ter estas músicas que raramente estão na ficção.
O elenco do filme é bastante extenso. Como foi o processo de conjugar os temas musicais, as personagens e os atores que as interpretam?
Misteriosamente são 50 personagens. Eram 63, mas como tive de cortar partes, porque o filme estava muito grande, ficaram 50. É uma coincidência feliz porque se comemoram os 50 anos do 25 de Abril. Foi um processo um pouco complexo, porque às vezes não é óbvio que tenha de ser um ator do teatro musical a interpretar os momentos musicais. Havia duas pessoas que para mim eram fundamentais: a Lúcia Moniz, para um determinado momento do filme, e o Diogo Branco, que abre o filme e que é neto do José Mário Branco. Mas também tive de fazer casting e a Lúcia Moniz estava presente para me ajudar. Queria que os momentos musicais fossem entre o cantado e o vivido. Era importante que a voz fosse captada em direto na rodagem, porque não queríamos dobrar em estúdio. Conseguimos que todas as canções do filme fossem cantadas em direto.
Optou por fazer um filme a preto e branco, mas todos os momentos musicais são a cores. Porquê?
Acho que a realidade portuguesa, pré-25 de Abril, era muito a preto e branco. Queria de alguma forma passar esta ideia triste de Portugal e de como os portugueses lidavam com a vida, com o peso da ditadura e com a realidade comezinha. De alguma forma, acho que a cor simboliza alguma coisa e tinha de estar mais perto das canções. A música traz-nos vida, esperança, apaixona-nos, é talvez a arte mais misteriosa de todas porque podemos ouvi-la, não precisamos de a ver ao contrário de quase todas as artes. A cor surge quando as pessoas cantam, como se fosse uma espécie de sol que as ilumina.
O filme revela muitas histórias, vários lados e interesses. Só assim podemos refletir sobre o passado?
Há muitas histórias, mas acho que as toco no sítio onde têm de ser tocadas. A ficção quando retrata o passado tem a tendência de compartimentar os tipos de personagens, por exemplo, o mau é sempre mau. Quando se fala do Portugal amordaçado há uma visão muito simplista de que os pobres são sempre bons e os ricos são todos maus. No filme não misturo realidades, mas sim comportamentos. Há uma complexidade entre o bem e o mal, as personagens têm essa dualidade. Ao escrever o argumento, o que me deu mais gozo foi estar constantemente a desmontar estas pessoas para que não fossem óbvias.
Não deixa de ser irónico que tanto tempo depois da ditadura e da revolução, voltemos a sentir que a liberdade está em causa. Enquanto seres humanos não evoluímos ao mesmo ritmo da evolução tecnológica. Concorda?
Parece que as pessoas se esquecem muito rapidamente das coisas. Em 2024, um milhão de portugueses, elegeram 50 deputados do Chega, o que não deixa de ser irónico, 50 deputados nos 50 anos do 25 de Abril – são um bocadinho assustadoras estas lógicas matemáticas. Nos últimos 200 anos de desenvolvimento tecnológico houve uma progressão demasiado rápida para aquilo que o ser humano consegue assimilar. As redes socais são hoje um grande big brother e deram protagonismo ao que estava na sombra. O cinema, a literatura, o teatro, as artes são muito importantes para combater estes fenómenos. Mas acho que continuamos a falar muito da coisa social e pouco da coisa política. Há medo de falar da política, porque quase todos somos subvencionados pelo Estado. Temos de pensar que o Estado não são as pessoas que estão no poder, o Estado somos todos nós e devemos a todos essa coragem de falar.