Filipa Vieira

Sabe Deus "não é um disco de fados, mas é um disco com muito fado"

Filipa Vieira

Filipa Vieira faz parte da nova geração de fadistas. Com um estilo único, a artista cruza a essência do fado tradicional com novas sonoridades, incluindo música pop contemporânea e nova música urbana portuguesa. A 20 de maio, a fadista atua no Teatro Maria Matos, onde irá apresentar o disco de estreia, Sabe Deus, que conta com produção de Tiago Pais Dias.

De onde vem o teu amor pelo fado?

Sempre ouvimos muita música portuguesa em casa, especialmente fado. O meu pai também cantava, mas mais por brincadeira. Desde pequenos, eu e o meu irmão fomos recebendo estas sementes. No meu caso, acho que isto foi terreno fértil para me apaixonar por este género musical. Comecei a cantar com 11 anos, e foi uma coisa muito natural.

Como se deu a tua entrada nas casas de fado?

Em pequena frequentava uma escola de fado, que se chama Claf, onde havia um senhor que desenvolvia um trabalho inacreditável com fadistas que estavam a começar, em que tirávamos tons e aprendíamos fados. Ao fim de semana, ele ia buscar-me, levava-me a casas de fado, fazíamos uma espécie de roteiro para eu beber um bocadinho dessa experiência das casas de fado. Desde aí passei a ter um contacto muito mais próximo.

Que tipo de experiência se adquire numa casa de fados que não se consegue ter numa sala de espetáculos?

É completamente diferente, basta o facto de estar todos os dias em contacto com pessoas que fazem parte da minha irmandade musical: com os músicos, com outros colegas fadistas, com os colegas mais velhos… O fado vive muito da transmissão oral, isso é basilar para desenvolver qualquer aprendizado desta linguagem. Além disso, a casa de fados é quase como se fosse a nossa igreja, se olharmos para o fado de uma forma espiritual. Portanto, há muito este culto, há muito esta respiração logo à partida. Quem vai já leva este ambiente consigo e nós tentamos entregar este ambiente também. Ali é the real deal, não há como enganar.

Apesar de já andares nestas andanças há muitos anos, só agora lançaste o teu primeiro disco, Sabe Deus. Porquê?

Para já porque este caminho discográfico, especialmente no mercado da música em Portugal, é um caminho com bastante escolhos. Portanto, não é uma coisa muito fácil de furar e de se conseguir concretizar. Depois, acho que só a partir de determinada altura – acreditando que as coisas acontecem na altura certa – comecei a ganhar maturidade e mais consciência do que queria fazer e das coisas que tinha para dizer. Acho que é muito por isto que o disco só é apresentado agora, sendo que levou quatro anos a ser feito. Foi um trabalho muito laboratorial, de muitas experiências, com a pandemia pelo meio também.

Como descreverias este disco?

O ponto de partida é sempre o fado. É sempre o fado que faz este convite a outros géneros musicais, a outras sonoridades, para dialogarem. Não é um disco de fados, enganar-te-ia se dissesse que sim, mas é um disco que tem muito fado, não há como isso não acontecer. A semente de pensamento é uma fadista, portanto, logo aí, o mote é esse. Não é um disco de fados, mas é um disco com muito fado. Acho que é assim que o posso descrever.

Como é que surge o nome do Tiago Pais Dias para a produção do disco?

Vi um trabalho do Tiago de homenagem à Amália e achei muito interessante a energia que ele imprimiu no projeto. Combinámos uma reunião e começámos a desenvolver este trabalho.

O primeiro single, Vai Dar Banho ao Cão, aborda o tema do assédio, algo muito frequente na vida das mulheres. Gostas de falar de assuntos com que as pessoas se identifiquem?

Não é propositado. Na verdade, o Vai Dar Banho ao Cão surge na sequência de um episódio que me aconteceu numa noite de santos populares, e que me serviu de inspiração para escrever a canção. Como é que é possível, em pleno século XXI, que 99% das mulheres continuem a passar por situações de assédio? Isto passou-se na noite de Santo António. Estava cheia de calor e tive de vestir o casaco como medida profilática para não ser assediada. Obviamente que isto interfere com a minha liberdade. Estive a sofrer imenso com calor para não ter de aturar parvoíces.

Qual a história por trás do segundo single, Cortar os Impulsos?

Essa canção nasce de uma fase menos bonita. Acredito que às vezes até os momentos de dor são bonitos, mas numa fase mais frágil, e a Cortar os Impulsos fala exatamente dessa superação. Embora não parecendo, é uma canção de esperança.

“O fado vive muito da transmissão oral, isso é basilar para desenvolver qualquer aprendizado desta linguagem”

O fado obedece a uma série de regras muito fechadas, nomeadamente em relação à forma como os fadistas se apresentam. Sentes algum preconceito em relação a isso?

Em relação às regras musicais e às métricas que fazem parte da linguagem, quando nos predispomos a escrever um fado tradicional ou a compor uma estrutura de fado tradicional, acho que essas regras musicais devem ser respeitadas. No meu caso, o propósito não é fazer fado tradicional, portanto liberto-me um bocadinho disso. Em relação à forma como os fadistas se apresentam, sejam mulheres ou homens, é uma herança deixada pelo Estado Novo, que cristalizou muito esta forma de a mulher ter de usar vestido preto e longo, xaile, e de os homens usarem fato. Antes do Estado Novo os fadistas vestiam-se com muito mais cores, até porque era uma camada da sociedade muito depauperada, portanto, usavam-se cores muito mais vivas. Na verdade, não quero saber se dizem se estou vestida de amarelo ou azul. Acho que não é isso que é importante, isso não diz muito sobre aquilo que faço.

Mas sentes que hoje há mais liberdade?

Acho que há um esforço por parte dos fadistas de romperem essas regras.

Há pouco público português nas casas de fados?

Não vejo com maus olhos que haja uma camada grande de turistas a ir às casas de fado. Pelo contrário, acho muito bonito podermos partilhar a música que se faz aqui neste pedacinho do mundo. Acho maravilhosa a experiência de pessoas que não fazem ideia do que é que nós estamos a dizer, se emocionarem, chorarem, se arrepiarem. Acho muito bonito de acontecer. Mas acho também que nós, portugueses, por tendência, não apoiamos muito a cultura e a arte do nosso próprio país sem que seja feita uma pré-validação externa.

Isso pode ter a ver com os preços que se praticam nas casas de fados?

Acho que é falaciosa essa ideia, porque todos os portugueses podem ir beber um copo a uma casa de fados depois do jantar. Isto é livre de acontecer, e a verdade é que os portugueses gastam muito dinheiro em futebol, por exemplo, e não é posta esta questão mais mensurável quando se fala de uma ida ao futebol. Acho que é mesmo falta estrutural de educação cultural.

O que estás a preparar para o concerto no Maria Matos?

Este espetáculo está a ser pensado de uma forma diferente de todos os concertos que dei até hoje, mesmo que em outros concertos já tenha cantado temas do disco. Neste concerto vão entrar todos os temas que estão no disco. Vai contar com convidados especiais, que estou muito feliz por estarem lá. E estou um bocadinho ansiosa pela positiva que este concerto aconteça, porque acho que vai ser muito bonito.

O disco saiu há muito pouco tempo. Já estás a pensar no que vem a seguir?

Já estou em estúdio a trabalhar noutras coisas. Parar é morrer.