entrevista
Pedro Cabrita Reis
"Não faço nada que não seja bom"
Pedro Cabrita Reis dispensa apresentações. A 18 de maio, aquele que é um dos principais artistas plásticos da sua geração e um dos artistas portugueses com maior reconhecimento internacional inaugura Atelier, uma exposição retrospetiva que reúne mais de um milhar de trabalhos feitos ao longo de 50 anos de carreira. Obras de pintura, desenho, gravura, escultura e fotografia invadem os Pavilhões da Mitra, ocupando uma área de cerca de 3.000 metros quadrados. Falámos com o artista a propósito da exposição que pode ser visitada até final de julho.
ATELIER reúne cerca de quatro centenas de trabalhos que pertecem ao seu acervo pessoal…
Esta exposição chama-se Atelier porque a totalidade das obras que aí se poderão ver é proveniente, exclusivamente, dos meus fundos, do meu património, do meu atelier. Não há nenhuma obra que pertença a qualquer outro tipo de coleção. Trata-se de 50 anos de trabalho. Na verdade, em termos cronológicos são um bocadinho mais, vão desde o princípio dos anos 1970, quando eu tinha 15 anos, até anteontem, ou, se calhar, até daqui a duas semanas, porque ainda estou a fazer coisas para a exposição. Não consigo evitar. Portanto, de momento, terei provavelmente cerca de 400 obras, talvez um pouco mais. [até à data da publicação desta entrevista, o número de obras já ascendia às 1500]
Como é que um artista constitui um acervo pessoal? Quais são os critérios que presidem a essa seleção?
É muito intuitivo. Muitos artistas fazem as obras individualmente, fazem uma coisa, depois fazem outra, e outra e por aí fora. Quando trabalho, faço-o sempre por séries. Por exemplo, se decidir fazer jarras de flores, eu não faço uma, faço 20 ou 30. Depois, há umas que não resistem ao exame e que acabam por se transformar noutra coisa. Das que sobram, há algumas que me tocam de modo particular e, essas, guardo para mim. Aliás, há uma piada feita por alguns conhecedores que diz que eu guardo sempre o melhor para mim e que vendo o que acho que não é o melhor. Claro que tenho sempre que contradizer essa afirmação, dizendo que não faço nada que não seja bom. Mas há, efetivamente, entre as coisas que são boas, umas que me tocam mais. Portanto, não há um método, nenhum processo, nenhum sistema, não há parâmetros, há apenas uma relação interior, emocional e forte, que faz com que se escolha esta obra e não aquela.
A maior parte das obras apresentadas nunca foram expostas. Porque só agora resolveu mostrá-las?
Eu não sei se é a maioria, mas há muitas obras que nunca foram mostradas. Talvez porque gostasse tanto delas que nunca as deixei sair do atelier. Mas também há outras que foram exibidas em exposições dentro e fora de Portugal e que, contudo, continuam a ser parte do meu acervo. O que pretendo é mostrar trabalhos que tenham esses dois tipos de vivência ou de viagem. Essa proximidade confere uma riqueza particular às peças, que, se calhar, é mais palpável para mim, porque nem toda a gente sabe quais foram as que saíram ou as que nunca saíram, mas, ao olhar para elas, faço uma filigrana que me faz passear no meu tempo.
Há algum discurso interno nesta retrospetiva? Pretende mostrar, essencialmente, a diversidade do seu trabalho ou há um fio condutor que une esta grande quantidade de obras?
O fio condutor existe, há um e é só um, que sou eu. O artista plástico conhecido como Pedro Cabrita Reis é o fio condutor desta exposição retrospetiva sobre os seus 50 anos de carreira. E porque é que eu insisto nisto, que parece uma piada, uma ironia? Por uma razão muito simples: não há nenhuma arquitetura construtiva desta exposição enquanto projeto. Não há uma narrativa cronológica, não há convivências formais, não há proximidades históricas, não há alinhamentos disciplinares, ou seja, não há um pavilhão de pintura, outro de escultura e outro de desenho. Tal como não há um dos anos 1970 a 1975, 1975 a 1980… Estas obras vivem na sua disparidade de formas, de tempos, de dimensões, de disciplinas, vivem todas ao lado umas das outras, pavilhão após pavilhão, nos oito que constituem o terreno da minha exposição, numa área de cerca de 3.000 metros quadrados. Porquê? Porque interessa-me construir, junto das pessoas que visitam a exposição, esta sensação de quase labirinto, de um encantamento que permite a qualquer momento começar a ler, a reler, a abandonar a leitura e passar para outra parede. Portanto, não há ambições nenhumas de ordem pedagógica. Há apenas a ambição profunda de estabelecer um laço emocional fortíssimo e duradouro entre o visitante, seja ele de que idade for, e as obras.
O seu trabalho é muito heterogéneo e desenvolve-se em vários meios, como a pintura, a escultura, o desenho, a gravura, a fotografia, a instalação, entre outros. Ao fim de 50 anos de produção artística, quais podem ser consideradas as características predominantes e identificadoras do seu trabalho?
Se começássemos por falar num plano meramente intelectual, espiritual ou crítico, essa disparidade é baseada numa coisa muito importante: a curiosidade permanente em relação àquilo que me rodeia. Nada mais pregnante do que a ligação com aquilo que é inesperado da vida do dia-a-dia. Passear na rua e ver um pneu encostado a uma porta pode ser determinante para mais tarde se realizar uma obra fundamental. Mas, tal como esse pneu, também se podem ver as sombras projetadas de um vaso de flores da vizinha do primeiro andar, que nos transporta diretamente para uma pintura, um desenho, uma aguarela. E se, do outro lado da rua, aparecer um grupo de miúdos acabados de sair da escola, aos gritos, às gargalhadas, às risotas e a cantar, essa situação induz, com certeza, pensamentos que se podem, mais tarde, vir a transformar em obras. Isto no plano daquilo que são as causas da inspiração. Se formos para um terreno um pouco mais árido, mais formal, sou conhecido por ter sempre utilizado materiais que pertencem a universos afastados das artes plásticas. A construção, o ferro, os tijolos, a pedra, o cimento… Também sou conhecido pela tal curiosidade pela comunidade, pela sociedade, pela cidade que, diariamente, nos deixa à disposição milhões de obras de arte ainda não feitas, já implicadas em objetos e coisas que se vêem. Uma mesa que só tem três pernas, ou uma cadeira que de repente tem as costas partidas, ou um chapéu de chuva sem pano. Tudo isso constitui um universo também importante, um universo de pretextos e motivações, que me levou a fazer muitas esculturas com aquilo que se chama cientificamente “materiais encontrados”. Mas eu, na verdade, sou um pintor e sempre pintei. Desenho praticamente todos os dias desde que me lembro. E a pintura sempre teve uma presença particular e, nos últimos dois, três anos, essa presença dilatou-se. Pinto como nunca pintei, mais, maior e, porque não dizê-lo, melhor. E estou a gostar.
A prática do autorretrato, recorrente na sua obra, corresponde a uma necessidade constante de introspeção?
Se fosse introspeção… Eu olho-me nos meus autorretratos de uma forma distanciada. Olho para eles como olho para uma escultura feita com pneus. Aquilo que está ali representado parece-se com um tal Pedro Cabrita Reis, mas esse mesmo Pedro Cabrita Reis, que é autor dessa obra que se parece com ele, não encara aquilo como um autorretrato. Os autorretratos têm, historicamente, esta espécie deste peso mítico de serem momentos de introspeção emocional do artista que se autorretrata. E os comentários de ordem crítica ou historiográfica andam sempre todos em torno da mesma questão: “o olhar, o não olhar”, “ele pintou este autorretrato depois da morte da sua primeira filha” ou “pintou este autorretrato quando conseguiu fugir e foi viver para um sítio”… Isso são sempre perspetivas de aproximação de ordem psicológica ou emocional. Portanto, são sempre relativamente românticas. Eu gosto de desenhar corpos humanos, gosto de desenhar cabeças, e faço isso com muita intensidade desde sempre. E, já agora, o modelo mais fácil que eu tenho sou eu por uma razão muito simples: porque já sei que sou baixo, gordo, careca, tenho uns olhos muito grandes e má cara. Portanto, sabendo isso tudo de antemão, não tenho que estar a olhar para o modelo para fazer, já me sai naturalmente. Ou seja, os meus autorretratos, se tivessem alguma ambição de ordem psicológica, seria, por um lado, retratarem a minha maldade, ou, por outro, disfarçarem-na o melhor possível.
No seu entender, a que se deve o reconhecimento internacional da sua obra?
Ao meu trabalho, claro. Faço parte da primeira geração de artistas jovens a seguir ao 25 de Abril. Não havia nada para nós, a não ser um vazio enorme para preencher. E quando não se tem nada, isso tanto pode ser tremendo como maravilhoso. Tremendo porquê? Veja-se o caso dos espanhóis: qualquer jovem artista espanhol tem atrás dele Velázquez, Miró, Picasso, El Greco, por aí fora. Os portugueses não têm nada disso. Têm dois poetas, ou tinham. Um chamava-se Luís de Camões e o outro Fernando Pessoa. No domínio daquilo que se convencionou designar como artes plásticas, que agora mais modernamente é “artes visuais”, o terreno estava vazio. Tudo era possível construir, não havia referências. Construímos à nossa medida, desenhado com aquilo que queríamos, com todos os riscos que isso acarreta, imperfeições, perdas e ganhos, quedas e levantar de novo. Na década de 90, de repente, irromperam dezenas de artistas e foi realmente um momento de grande intensidade e alegria criativa. Pois bem, o país é pequeno e a economia é precária. Não estão criadas as condições para o aparecimento de estruturas que apoiam a prática dos artistas: galerias, comércio, colecionadores, instituições, museus, publicações… Não havia nada dessa infraestrutura. Então, desde os anos 60, há sucessivas vagas de emigrações. Os artistas precisavam, acima de tudo, de ar para respirar, coisa que não havia durante a ditadura. E referências, museus para ver. Para um artista, ver um museu é como ir à escola, é para aprender. Ir ver uma pintura de Ticiano ou de Matisse é como ir a um pequeno seminário organizado por si próprio, para si próprio. Porque o país tinha mudado a seguir ao 25 de Abril, a geração dos anos 80, à qual eu pertenço, ficou. Dos artistas conhecidos, nenhum saiu e ficou lá por fora. Nos anos 90, volta o fenómeno de sair do país. Não só para conseguir ter outras condições de trabalho, mas, acima de tudo, para conseguir aquilo que é mais importante para um artista, que é a visibilidade da sua obra. Isso representa ter acesso ao circuito de exposições, museus e galerias, onde o artista português expõe, ao lado de outros artistas, em museus reconhecidos internacionalmente como sérios e legitimadores de trabalho. Portanto, no meu caso, o que eu faço é viajar, conhecer pessoas que se interessam pelo meu trabalho. Depois, há uma grande dose de aleatoriedade. Às vezes, as coisas podem correr bem mas, na maior parte das vezes correm mal. No entanto, o somatório do correr bem e do não correr bem acaba por representar aquilo que é sair de Portugal sem nunca ter saído de Portugal.