No território dos predadores

"Leões", de Pau Miró, no Teatro da Politécnica

No território dos predadores

Depois de Girafas, os Artistas Unidos prosseguem a Trilogia das fábulas do dramaturgo catalão Pau Miró com Leões. Encenada por António Simão, esta é uma peça enigmática sobre um jovem da "zona alta" que, numa conturbada incursão por um bairro popular de Barcelona, se vê aprisionado na lavandaria de uma família humilde e cheia de segredos.

Embora não surja literalmente referido, à semelhança de Girafas é no Raval que decorre a ação de Leões. Trata-se do bairro popular mais emblemático da Cidade Velha de Barcelona e, muito provavelmente, o mais cosmopolita, sendo nele que parte considerável da obra de Pau Miró se inspira.

A propósito desta peça, o autor assumiu ter roubado “impudicamente” ao bairro “as pequenas paisagens que [ali] se descrevem”. No texto que escreveu para o dossier de imprensa aquando da estreia de Leões, em março de 2009 no Teatro Nacional da Catalunha, Miró resume com especial precisão o pulsar do Raval: “sair todas as manhãs na rua e encontrar olhares ameaçadores, olhares carregados de tantas nuances; sentir na atmosfera uma espécie de violência enterrada que está sempre prestes a explodir.”

É nesta selva urbana, simultaneamente atraente e hostil, que Miró situa os seus predadores, no caso “uma família entre muitas famílias” que, certa noite, na sua obsoleta lavandaria, recebe a visita acidental de um estranho (Vicente Wallenstein), vindo da “zona alta” da cidade.

Assustado, o rapaz implora a uma jovem em cadeira de rodas (Iris Runa) que lhe lave a camisa ensanguentada que traz vestida. A rapariga anui mediante pedidos bizarros, mas a noite torna-se ainda mais estranha quando surge um pai (Pedro Carraca) demasiado prestável e uma mãe (Andreia Bento) excessivamente afetuosa.

Ao início da madrugada, aparece na lavandaria o inspetor da polícia (Pedro Caeiro), personalidade bem conhecida no bairro, no encalço do meliante que terá esfaqueado um traficante de droga num beco vizinho. Numa críptica cumplicidade, a família oculta a presença do estranho. E a mãe, num excessivo gesto maternal (talvez porque aquele jovem lembre o filho que perdeu há alguns anos), ainda lhe oferece um leite quente com Cola Cao.

“Talvez”, dizemos nós, porque, como nota António Simão, “nunca são claras as intenções que as personagens nos revelam”. Leões é uma peça de contrastes, com a ternura e a compreensão a coexistirem com uma atmosfera de ameaça e de violência latente. “À maneira do policial, há sempre qualquer coisa escondida que não nos é dita. Essa é, aliás, uma das características que a generalidade das peças do Miró têm”, observa o encenador.

Uma herança de Pinter como é evidente, ou não fosse o próprio Miró a inscrever o dramaturgo britânico nas suas principais influências, a par de Beckett e da sua conterrânea Lluïsa Cunillé. A ambiguidade muitas vezes desconcertante de Leões levou António Simão a recomendar frequentemente aos atores que “não dessem as suas personagens como resolvidas. Sabemos que há sempre mais alguma coisa, que existe ali algo que não foi dito e que virá a ter valor para o desenrolar da ação.”

Toda esta teia de mistério, que “como tantos policiais contemporâneos, acaba por ser inconclusiva”, proporciona um inquietante desconforto na plateia. Mas, um dos grandes trunfos do texto, e particularmente desta encenação, é procurar oferecer ao público alguma familiaridade. “Como o Miró apenas refere que a ação se passa nos dias de hoje, procurei, pela paixão que tenho por essas décadas, dar-lhe coisas de finais de 80, algures de 90 e ano 2000. Até lá está um néon, a música indie e até qualquer coisa de Tarantino.”

Para além disso, voltando à geografia, aquele Raval pode ser um qualquer bairro popular no centro de uma velha cidade europeia, como Lisboa. “Aqueles pais ainda são de uma época em que havia ditadura, provavelmente vieram do campo para a cidade e ali abriram a sua lavandaria. Mas veio a globalização, o bairro e a cidade mudaram, aquele negócio já pouco dá. E eles estão ali fechados”, conjetura o encenador.

Com estreia marcada para 11 de abril, Leões permanece em cena até 4 de maio, no Teatro da Politécnica. Logo no dia a seguir à estreia, Pau Miró vai estar em Lisboa, participando, no final do espetáculo, numa conversa com o público e a equipa artística. Antes, pelas 18 horas, o autor catalão falará sobre o conjunto da sua obra, nomeadamente sobre as “fábulas” já publicadas entre nós nos Livrinhos de Teatro e que são a grande aposta deste ano dos Artistas Unidos.