O silêncio vistoso das ‘Girafas’

Primeira incursão na Trilogia das fábulas de Pau Miró pelos Artistas Unidos

O silêncio vistoso das ‘Girafas’

Ela sonha com uma máquina de lavar roupa, ele com o filho que tarda. No pequeno apartamento onde habitam há ainda o irmão dela, mudo devido a um trauma de infância, que passa horas a olhar o céu sobre Barcelona, e um hóspede com vida dupla que ambiciona ganhar a lotaria e partir para Paris. Com encenação de Nuno Gonçalo Rodrigues, Girafas é a primeira "fábula" da Trilogia do dramaturgo catalão Pau Miró, que os Artistas Unidos levam a cena nos próximos meses.

Na peça que o catalão Pau Miró escreveu para completar a sua Trilogia das fábulas (onde figura Búfalos e Leões) recorreu ao mamífero de longo pescoço que conhecemos como girafa. O autor nunca terá justificado o título, e a peça está distante de o fazer, muito embora Miró tenha dito, com algum humor, que “se transformássemos uma drag queen num animal seria certamente uma girafa”.

Pelo menos foi esta ideia que o encenador Nuno Gonçalo Rodrigues reteve quando iniciou o trabalho de pesquisa para encenar Girafas. E há, de facto, uma drag queen (e, consequentemente, um número drag, ao som de Milord de Édith Piaf, passado num recôndito cabaret de Barcelona) a quem o autor chama Aurora e, na didascália, “a girafa do Paral-lel”, numa referência a uma das principais avenidas da capital da Catalunha, conhecida até à segunda metade do século passado pelos seus teatros e clubes noturnos.

“Não sei como ele chegou a essa relação tão direta da drag queen com a girafa, mas ao mesmo tempo não posso dizer que não a entenda”, explica o encenador, relevando a “elegância e o porte” em comum. No fundo, “a girafa é um animal muito vistoso”, mas também misterioso, porque “não tendo cordas vocais, não comunica por sons, mas por uma espécie de infrassons.”

Esse aparente emudecimento da girafa estabelece uma correspondência com as personagens da peça. Para Rodrigues, “o que elas fazem é recorrer ao subtexto, aos subentendidos ou aos contrários [das suas vontades] para comunicarem umas com as outras.”

Se, na aparência, Girafas se parece resumir a um drama familiar passado no final dos anos de 1950, em plena ditadura franquista, num bairro popular de Barcelona (o Raval), o autor parece inspirar-se nesse mecanismo silencioso das girafas para construir uma peça fascinante e complexa onde, como nota Rodrigues, se desenvolvem “duas dinâmicas” que lhe interessaram particularmente.

Por um lado, há um mecanismo que se assemelha ao das “memórias que se esboroam”, com “as cenas contaminando-se umas às outras e tornando as passagens algo difusas”, roçando mesmo “a alucinação”. Por outro, está sempre presente nas personagens “a necessidade de evasão de uma realidade opressiva. É a ditadura de Franco, que pode ser transportada para o salazarismo, ou sabe-se lá para o que mais aí venha.”

Cada uma das personagens procura, precisamente, evadir-se através de algo que deseja arduamente. Contudo, a força e o poder da realidade vai condicionar sempre esse desejo, levando a que, no final da peça, fiquemos com a sensação de que todas elas mudaram profundamente desde o início. E perderam dentro de si, ou em si, qualquer coisa.

Isso leva Rodrigues a considerar Girafas “uma peça sobre desaparecimentos”, porque é isso que as ditaduras fazem aos seres humanos. “Mesmo quando as pessoas não desaparecem fisicamente, há sempre qualquer coisa nelas a desaparecer”, observa o encenador.

Ela, eles e a Bru

O espetáculo começa ao som de um jingle. Em cena, um vendedor (Vicente Wallenstein) anuncia a uma mulher (Eduarda Arriaga) as vantagens de ter uma máquina de levar roupa, nomeadamente, uma Bru: “com uma Bru em casa, estará de bom humor sete dias por semana”, proclama.

A mulher passa a sonhar com aquele eletrodoméstico que lhe poderá poupar 18 horas de trabalho doméstico por semana. É isso que transmite ao marido (Pedro Caeiro), um carpinteiro que garante o sustento da casa, mas que a dureza do trabalho e o ciúme tendem a transformar num homem cada vez mais sombrio. No entanto, enquanto sonham com a criança que não conseguem ter e ele delineia projetos a dois, ela também sonha com a Bru. Afinal, o vendedor garante andar por ai a “prosperidade económica”…

No modesto apartamento do casal vive ainda o irmão dela (Gonçalo Norton), um jovem mudo que passa as horas a olhar o céu sobre a cidade à espera de um qualquer sinal galáctico, e um hóspede (João Vicente) que vive uma vida dupla como drag queen no clube La Polvera. Se o irmão procura no mistério do infinito um sinal da mãe que perdeu, o hóspede sonha com a lotaria e com a evasão para Paris, a cidade prometida onde poderá, por fim, ser quem verdadeiramente é.

São estas personagens e as suas existências, tão banais quanto complexas, que durante pouco mais de hora e meia vemos desfilar em Girafas, espetáculo em cena no Teatro da Politécnica até final de março. A trilogia de Pau Miró prossegue em abril, com a estreia, a 11, de Leões, numa encenação de António Simão, e conclui-se em setembro com Búfalos, peça encenada por Pedro Carraca. Se tudo correr bem, ou seja, os Artistas Unidos garantirem, por fim, um espaço para continuar a apresentar-se ao público, a Trilogia subirá ao palco, na íntegra, por alturas do outono.