O bichinho do teatro

Os amadores também levam a arte muito a sério

O bichinho do teatro

No latim, “amatore” significa 'aquele que ama, aquele que gosta de amar'. A palavra deu origem, no português, a “amador“, e nomeamos aqui a sua etimologia para evocar todos aqueles que, não fazendo do teatro profissão, lhe entregam tempo, dedicação e, claro, muito amor. No mês em que se celebra o Dia Mundial do Teatro (27 de março), homenageamos os artistas amadores, dando palco ao Teatro de Carnide, teatroàparte, Teatro Contra-Senso, Companhia da Chaminé, Teatro da Nações e Grupo de Teatro Playback da ILGA.

Em todas as faixas etárias, encontramos artistas a partilhar a experiência transformadora que viveram a partir do momento em que começaram a fazer teatro, o encantamento que sentem ao viver outras vidas (nem que seja por breves minutos), ou até o lado terapêutico de abraçar uma arte que, a par da música ou da prática desportiva, forjou muito do espírito associativo dos lisboetas.

No mês em que se celebra mais um Dia Mundial do Teatro (27 de março), homenageamos os amadores que levam esta coisa de fazer teatro muito a sério, dando palco a seis grupos sediados em várias zonas da cidade.

“Como fazemos tudo por carolice, aqui nunca há lugar para desânimos”

Teatro Contra-Senso

Av. François Mitterrand. Lote 737, Loja B. Bairro do Armador

Vão ser meses frenéticos aqueles que se aproximam. Para além da digressão do espetáculo de poesia encenada Estação-Poema, em coprodução com o Teatro Independente de Loures, o Teatro Contra-Senso prepara uma evocação do 25 de Abril, para integrar o programa celebrativo da freguesia (estreia marcada para 11 de abril, na Biblioteca de Marvila); e desenvolve, com a atriz Ana Palma, um projeto com repercussão internacional, que irá, provavelmente, ao Líbano ainda este ano.

Para o grupo, de momento, o maior constrangimento é mesmo a impossibilidade de uso da sede, desde que uma inundação inviabilizou o espaço e remeteu “os ensaios para o online”. Mas, “como fazemos tudo por carolice, aqui nunca há lugar para desânimos”.

Esta história de amor pelo teatro começou “por 1994, na [Escola Secundária] D. Diniz, “com as peças de Gil Vicente”, recorda Marina Subtil, aluna da escola e, a par de Vanessa Filipe, a mais antiga atriz do grupo. “Nos primeiros tempos, o projeto era tão acarinhado pela direção da escola que era lá que ensaiávamos”, sublinham ao lembrar que o grupo foi fundado por um conjunto de “jovens de 17, 18 anos”, destacando-se Miguel Mestre, que viria a ser autor de muitas das peças encenadas. 25 Anos depois de, oficialmente, o grupo ter passado a chamar-se Teatro Contra-Senso, “o núcleo ativo conta com cerca de 15 pessoas”.

“Chegámos a ser entre 20 a 25, sendo normal, ano após ano, novas entradas e saídas, até porque as pessoas mudam de vida e algumas delas saem mesmo da cidade”, constata Sónia Castro, atriz que assume também a responsabilidade pela comunicação do Contra-Senso, e que não deixa de apontar que um dos problemas do teatro amador numa cidade como Lisboa, com “tanta oferta cultural, é a adesão do público, comparativamente ao que se passa noutras localidades do país. Aí, os grupos de teatro amador são conhecidos por todos, e as salas enchem para ver os seus espetáculos.”

“Quando subimos ao palco, todos ganhamos uma alma nova”

teatroàparte

ART – Associação de Residentes de Telheiras (Rua Prof. Mário Chicó, 5)

Tudo começou há 25 anos, quando uma jovem residente em Telheiras, ligada ao teatro universitário, se dirigiu à ART (Associação de Residentes de Telheiras) propondo realizar um workshop de expressão dramática. Susana Graça Oliveira recebeu resposta positiva e, quando à sua volta se reuniram pouco mais do que meia dúzia de formandos, estava muito longe de prever que, aquilo “que seria para durar dois meses, haveria de se prolongar até hoje.”

Quem nos conta esta história é Mariana Sousa, o membro mais antigo do teatroàparte – “depois de termos sido Teatro dell’ART e Pó de Palco, registámos a marca para evitar confusões” – e responsável pela produção. “O entusiasmo das pessoas” desde 1997, “quando o resultado do workshop foi apresentado no antigo lagar de Telheiras [Quinta de São Vicente]”, fez como que o grupo se desenvolvesse e atraísse para o dirigir profissionais do teatro, como os atores Fernando Ascensão, Pedro Carmo e Jorge Parente, os encenadores Bruno Bravo e Gonçalo Amorim, ou o atual presidente do conselho de administração do Teatro Nacional D. Maria II, Rui Catarino. “Normalmente, um encenador está connosco entre três e cinco anos. Quando sai, recomenda o próximo.”

Desde 2021, é Eurico Lopes quem está ao leme do teatroàparte e, depois de encenar uma peça de Alejandro Casona e uma adaptação de Ensaio Sobre a Cegueira de José Saramago, prepara para maio a estreia de MHL [título provisório], espetáculo a partir da vida e obra do surrealista Mário Henrique Leiria.

Mas, o que move este grupo, hoje constituído por 19 elementos que se reúnem, todas as segundas-feiras à noite, no Centro Comunitário? Mariana Sousa não tem dúvidas: “é o gosto pelo teatro, é o convívio, é o apelo de estar em cena. Quando subimos ao palco, todos ganhamos uma alma nova.”

“Trabalhar as nossas próprias histórias pode tornar-se muito libertador”

Grupo de Teatro Playback da ILGA

ilga-portugal.pt

No âmbito de um projeto europeu, encabeçado em Portugal pelo ISPA (Instituto Superior de Psicologia Aplicada), que “procurou dar palco a comunidades em contexto de menor visibilidade e trabalhar a temática dos direitos humanos”, a ILGA Portugal (Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual, Trans e Intersexo) foi desafiada a associar-se, promovendo nesse sentido um grupo de teatro playback. O sucesso da iniciativa foi tal que “o grupo continua para lá do projeto”, sendo neste momento o sucessor natural do grupo de teatro que a associação dinamizava desde 2013.

Atualmente, como explica Emídio Dias, cerca “de 20 pessoas, entre os 19 e os 46 anos, compõe este grupo de uma grande diversidade de género, de raças e até de línguas”, que todas as quartas-feiras, na Biblioteca Palácio Galveias, encontram “um espaço de partilha e de escuta empática, um espaço seguro onde se é acolhido sem o preconceito nem a discriminação a que muitas vezes algumas se é sujeito no dia-a-dia.”

Vindo “do psicodrama e da psicoterapia”, o teatro playback pode ser entendido como uma vertente do teatro improvisado que utiliza as narrativas pessoais do público como base para as representações dramáticas. Ou seja, “o público que vem ver uma performance de teatro playback não pode, de todo, esperar ser um ator passivo”. No seio deste grupo de teatro, o performer é também o membro da audiência, e assim “partilham-se e reproduzem-se as histórias contadas por cada um. E, trabalhar as nossas próprias histórias pode tornar-se mesmo muito libertador”, conta Emídio.

Talvez por isso, para os membros da comunidade LGBTQIA+ que integram este grupo de teatro, “isto é um bocadinho como casa”. Mas, o Grupo de Teatro Playback da ILGA é também, “para muitos de nós, um lugar de reivindicação e de ativismo social e político.”

“Abdicamos de tudo às segundas à noite e vimos ensaiar”

Teatro das Nações

jf-parquedasnacoes.pt

O auditório do edifício do IPDJ na Rua de Moscavide foi pequeno para o sucesso de A Birra do Morto, de Vicente Sanches, peça levada a cena recentemente pelo Teatro das Nações. O grupo de teatro amador fundado em 2016 pela então recém-criada Junta de Freguesia do Parque das Nações (JFPN) continua a somar êxitos, e a procura é tanta para o integrar que, como conta Teresa Cabral, “nas recentes audições tivemos um número largamente superior de candidatos para as vagas disponíveis”.

Neste momento, “16 atores” trabalham com a encenadora Catarina Vargas num espetáculo alusivo aos 50 anos do 25 de Abril que estreará no próximo mês de junho. “Estamos a fazer investigação com os atores, a organizar um conjunto de atividade paralelas, como uma ida ao Museu do Aljube, para preparar o espetáculo”. A encenadora procura com isso proporcionar “uma peça imersiva destinada a um espaço não convencional, que permita ao público estar junto dos atores”. Aliás, eles vão ser determinantes no processo de pesquisa, já que a peça procurará “trabalhar a visão que cada um tem da liberdade e da importância da data, isto num grupo que vai dos 27 aos 70 anos.”

Entretanto, paralelemente ao Teatro das Nações, a JFPN tomou a iniciativa de formar um grupo de teatro infantil e outro juvenil. “Hoje, temos aqui famílias inteiras a fazer teatro”, garante Teresa Cabral, sublinhando que as pessoas que integram o Teatro das Nações “vivem ou trabalham na freguesia, e têm em comum esse bichinho”. Como conta Júlia, uma das atrizes mais antigas, “abdicamos do tempo que temos para nós e para a família todas as segundas-feiras à noite, e vimos ensaiar”. Ou não fosse “o teatro a paixão comum neste grupo solidário e amigo.”

“Fomos sempre uma escola para futuros profissionais”

Teatro de Carnide

Azinhaga das Freiras, 33

Entre o passado glorioso no teatro amador e a evolução para uma estrutura profissionalizada que não abdica do legado “de fazer mesmo aquilo que quer”, compreende-se uma história centenária. As origens do atual Teatro de Carnide (TC) remontam à fundação da Sociedade Dramática em 1913, mas será 50 anos depois que um grupo liderado por Bento Martins inicia um novo ciclo, surgindo o Grupo de Teatro de Carnide.

“Na altura não existia a oferta cultural que temos hoje, cabendo às múltiplas coletividades existentes na cidade dar essa resposta”, lembra a presidente da associação TC, Teresa Martins. Já em democracia, o TC atinge o auge com arrojadas encenações de autores portugueses, como Bernardo Santareno ou Luís de Sttau Monteiro, e estrangeiros.

“Entre a década de 80 e a de 90, o grupo de teatro participava em festivais internacionais e acumulava prémios”, tendo sido premiado no então Festival de Teatro Amador da Câmara de Lisboa por cinco vezes, e considerado, em 1999, o melhor grupo amador do país pelo Instituto Português das Artes e Espetáculos. “Houve uma altura que deixámos de ir aos concursos porque os outros grupos diziam que ganhávamos sempre”, recorda a atriz profissional Mónica Garcês, que no TC deu os primeiros passos, e se prepara agora para integrar o elenco de Cicatrizes, peça escrita e encenada por Claudio Hochman, naquele que será um dos projetos artísticos a ser levado à cena este ano. Na verdade, o TC é hoje uma estrutura profissional que não deixou de ser palco de inúmeros amadores. “Há quem diga que fomos sempre uma escola para futuros profissionais”, sublinha Teresa Martins evocando atores como João Ricardo ou Maria João Falcão.

A braços com a indefinição sobre a futura sede (projeto vencedor do Orçamento Participativo municipal em 2017), o TC continua a distinguir-se junto da comunidade pelo trabalho desenvolvido na área da formação e por ser a associação que anualmente organiza a Marcha Popular de Carnide.

“Este é um projeto transformador na vida das pessoas”

Companhia da Chaminé

companhiadachamine.com

“Há mais de 17 anos que andamos nisto”, exclama com notória alegria a atriz amadora Teresa Costa Félix, durante uma pausa no ensaio de A Birra do Morto, peça que o grupo sénior da Companhia da Chaminé prepara para apresentar, no Centro Cultural Franciscano, no início do próximo mês de junho. Esta publicitária reformada está na génese daquilo que é hoje o projeto fundado e liderado pela atriz Mariana Amaral. “Conheço a Mariana desde miúda e, quando soube que ela dava aulas de teatro a crianças, desafiei-a a fazê-lo com pessoas da minha idade. Ela concordou, eu juntei mais umas pessoas, e tudo começou numas casinhas do Pátio do Paiol [em Campo de Ourique]”, recorda.

Paralelamente ao seu trabalho de atriz, Mariana descobria que este era o início de “um projeto transformador na vida das pessoas”. Com o grupo a solidificar-se passou a complementar o trabalho de formação com a encenação. “Começámos a apresentar-nos regularmente na [Sociedade] Guilherme Cossoul comigo a encenar. Fizemos Sophia de Mello Breyner, André Brun, Steven Berkoff e outros. Até chegámos a ir ao Porto com As Ligações Perigosas [peça de Christopher Hampton]. Era só vontade, nada de budget!”.

Quando em 2016 instala um estúdio em casa, Mariana agrega todos os seus projetos “de formação de pessoas dos três aos 100 anos de idade” sob a denominação de Companhia da Chaminé, devido a uma grande chaminé existente no pátio traseiro. A partir daqui, rodeia-se “dos melhores profissionais, como Claudio Hochman ou Pedro Carmo”. Por perceber “a alegria e o alento” que o teatro transmite a tantos jovens e menos “jovens”, Mariana não se cansa de afirmar “como cada ator amador que está na Companhia torna cada um dos nossos dias sagrado.”