Diana Niepce

"O meu corpo é (...) um corpo que levo ao limite num lugar que nem sempre é muito generoso com ele"

Diana Niepce

Diana Niepce vai ter um ano muito preenchido. Para além das novas criações artísticas, a bailarina, coreógrafa, investigadora e também escritora, é a curadora do ciclo Corpos Políticos, que promove uma reflexão sobre a questão do corpo fora da norma nas artes performativas, a partir de 4 de março, na Culturgest. A conversa que se segue dá a conhecer um pouco do pensamento e do processo de trabalho de uma artista que não gosta de ser olhada com paternalismo e condescendência, mas antes por aquilo que é: uma criadora de quem continuaremos a ouvir falar em 2024, e mais além.

Gostaríamos que começasse por nos falar do ciclo Corpos Políticos de que é curadora, referindo a sua importância e os objetivos da programação a apresentar.

Este ciclo cria um lugar de reflexão, de pensar as artes performativas e a deficiência, e nesse sentido os corpos que se estabelecem enquanto sujeitos políticos por não serem aceites em qualquer tipo de ambiente social. O ciclo corresponde a um desejo de dar acesso a informação, a conferências em torno da questão de como a pessoa com deficiência é observada, principalmente no contexto artístico. Inclui performances, conferências, debates, espetáculos, workshops, e tem ainda o intuito de homenagear estes corpos conscientes de que têm uma durabilidade diferente, e uma existência que é constantemente contestada.

Em que contextos conheceu os artistas nacionais e internacionais que integram o programa deste ciclo?

Eu também trabalho em investigação no campo da historiografia dos corpos não normativos, quer nacional quer internacional. Cruzei-me com alguns destes artistas no European Access, uma plataforma internacional de artistas com deficiência, através da qual o British Council proporciona encontros. Com outros trabalhei em Portugal, como por exemplo a Joana Gomes. E ainda outros chegam por parte da minha investigação, como é o caso do Tito Rajarshi, um escritor. Na verdade existe uma espécie de comunidade, de comunhão entre semelhantes, porque as nossas lutas são comuns independentemente do país onde estamos.

O seu trabalho de ativismo e sensibilização para o maior acesso dos corpos não normativos em todas as situações da vida, desenrolando-se num espaço cultural de referência para as vanguardas, corre de alguma forma o risco de falar para um público já alertado para este tema?

Acho que nunca estamos muito alertados ou suficientemente alertados. Nós continuamos a ter as mesmas discussões que tínhamos há dez anos. Existe um lugar empático mais comum e as coisas estão mais simples. Mas é um lugar que continua a precisar de ser discutido. Continuo a ter de justificar a minha existência constantemente. Estou aqui a dar uma entrevista, a seguir vou apanhar um Uber e, quando digo que sou bailarina, perguntam-me se eu danço na junta de freguesia. Não somos vistos como iguais. A forma como as pessoas com deficiência são observadas neste país ainda vem ou de um lugar de condescendência, de paternalismo, ou de inspiração, de superação. Não somos vistos como iguais. Acredito que não corremos o risco de falar para pessoas já sensibilizadas, porque quando convido o Lennard J. Davis, ele traz uma abordagem filosófica sobre o modo como as pessoas são observadas, em torno do the gaze da Rosemarie Garland-Thomson. Isto vem da filosofia e não é algo que seja óbvio. Estamos a trazer conceitos que são ainda novos em Portugal. Quando o Tito [Rajarshi Mukhopadhyay] escreve o livro Plankton Dreams estabelece uma relação sarcástica e um estudo de base de dados em torno da escola das necessidades especiais. Ele diz “tornei-me filósofo a partir das minhas próprias humilhações”. São lugares de reflexão que por norma não estão garantidos.

“A forma como as pessoas com deficiência são observadas neste país ainda vem ou de um lugar de condescendência, de paternalismo ou de inspiração, de superação.”

Enquanto espectadora de artes performativas procura ver espetáculos que não se situem exclusivamente no campo das disability arts?

Sim, vejo muita coisa, às vezes vejo até demasiadas coisas. Muito daquilo a que assisto não vem da relação da arte com a deficiência, porque não nos esqueçamos que muitas vezes os artistas com deficiência não têm acesso a um ensino académico como tem um artista normativo. O seu trabalho não tem o mesmo nível de recursos financeiros ou em termos conceptuais. Eu também trabalho com artistas que não têm qualquer tipo de deficiência.

Concebe vir um dia a criar um espetáculo que não tenha o seu corpo como objeto principal de estudo, e que possa vir a apresentar apenas bailarinos com corpos normativos?

Eu trabalho com bailarinos normativos. Criar uma peça só com bailarinos normativos é uma coisa muito fácil de fazer. São corpos muito treinados; são corpos que estão numa fábrica da hierarquia do corpo performativo. Mas, isso teria de corresponder a um convite, tipo “a Diana Niepce vai coreografar para a Companhia Nacional de Bailado”. Agora eu enquanto criadora num projeto meu, interesso-me por corpos diversos, e não um corpo que está treinado segundo uma estética já um bocadinho ultrapassada, no sentido de que os corpos não devem ser só vistos pelo que fazem em termos de execução física. As minhas peças não são sobre a capacidade física de execução do corpo. São sobre um outro lugar, que implica limites físicos e psicológicos. Interessa-me ainda trabalhar com artistas de circo ou da live art, que vão para um lugar diferente da performance. Com ou sem deficiência.

A questão do desejo ligada ao corpo e à sexualidade é algo que está presente nas suas criações? É importante para si sentir-se desejada? Ou dar a ver o seu corpo como um corpo que deseja?

As pessoas com deficiência nunca são observadas como um lugar sexual, de desejo sexual. Se isso algum dia foi uma questão, não o é mais para mim. Mas o meu trabalho passa pela exposição do corpo como ele é, ou seja, a nudez é importante para mim. Não pela parte do desejo porque está ali inerente a partir do momento em que temos corpos nus, mas mais pela apresentação do corpo como ele é, com as suas falhas e valências, virtuosidades ou estranhezas. Também não uso cadeiras de rodas, próteses ou canadianas, no sentido em que não me interessam coisas que adestrem o corpo, que o obriguem a normatizar ou a criar eficiência. O meu trabalho vai no sentido de uma estética deleuziana do corpo que se expõe. Trabalho sobre fragilidade, sobre força, sobre potência, sobre intimidade.

Tem memórias ou toma nota dos seus sonhos? Usa esse material no seu processo de criação?

É uma pergunta curiosa porque sonho muito com coisas que aplico nas minhas peças. Já sou uma pessoa que sonha muito, e nos processos criativos ainda mais. Acordo com a memória do que sonhei. E o meu trabalho vem também de um lugar da intuição. Faço um grande trabalho de pesquisa e depois recorro a inputs de intuição.

Em O Outro Corpo, conferência-performance que passa pela Culturgest a 6 de março. ©Alípio Padilha

A relação de amor e ódio com o seu corpo é algo ainda presente no dia-a-dia?

O meu corpo é o meu corpo. Quando me olho ao espelho é este o meu corpo. Um corpo que levo ao limite num lugar que nem sempre é muito generoso com ele. Estou numa fase em que a reflexão me diz que os artistas com deficiência têm um tempo diferente, mesmo de vida e de existência, de reconhecimento. Até onde é que o meu corpo vai aguentar o nível de pressão que lhe coloco? Neste semestre tenho três criações e muitas circulações. Mais o ciclo Corpos Políticos, de que já falámos. A juntar à necessidade de tentar mudar paradigmas do sistema, que me levam a que fique doente. O meu corpo não sendo normativo sofre já de fadiga crónica.

Que diferenças existem entre o sentido do risco a que sujeita o seu corpo atualmente e no passado antes do acidente, e os níveis de adrenalina potenciados por esses diferentes limites?

Eu trabalho sobre o risco. Mas sem perigo. Estou sempre consciente da fragilidade da condição dos corpos. Não só do meu, mas também dos meus intérpretes. Muitas das situações de risco em que me coloco, é porque não acho justo colocar ninguém para além de mim nesse conflito, nesse evento cénico. Trabalho com noções de não-gravidade, horizontalidade e verticalidade, de que forma os corpos se compõem no espaço, criando narrativas ficcionais em que se transcendem. O que verdadeiramente me interessa são lógicas de física. Trabalhá-las de uma forma que se torna quase mágica.

Que objetivos profissionais tem definidos para o resto do ano?

tenho, portanto, de 4 a 16 de março o ciclo dos Corpos Políticos, com apresentações minhas e de outros artistas – como o Dan Daw ou a Diana Anselmo -, mas depois terei a Utopia, que estreia no Teatro do Bairro Alto a 3 de abril; a minha nova criação, que é uma peça duracional de 4 horas; e tenho ainda uma peça com o Teatro Nacional Dona Maria II em julho, chamada Norma.