Os livros de junho

Sete livros, sete escolhas

Os livros de junho

Abdulrazak Gurnah escreve no admirável romance O Desertor: “Há, como podem ver, um eu nesta história, mas não é uma história sobre mim. É uma história sobre todos nós (…). Revela que uma história contém muitas outras, e que elas não nos pertencem, mas se confundem com o curso do nosso tempo, que se apoderam de nós e nos enleiam para todo o sempre”. Este é um dos sete livros recomendados pela Agenda Cultural para o mês de junho em diversos géneros literários, como o romance, o estudo, o teatro e a poesia. Livros que contêm muitas histórias que se apoderam de nós.

Abdulrazak Gurnah

O Desertor

Abdulrazak Gurnah, escritor nascido em Zanzibar em 1948, que vive no Reino Unido desde 1960, foi considerado pela Academia Sueca, ao atribuir-lhe o Prémio Nobel de Literatura 2021, “um dos autores pós-coloniais mais proeminentes do mundo”. O Desertor, o seu quarto título editado em Portugal, é uma obra admirável sobre duas histórias proibidas de amor inter-racial, separadas por duas gerações. De forma inesperada, essas histórias são quase elididas, ficando o leitor a saber apenas que existiram factualmente. O que interessa ao autor são as circunstâncias em que ocorrem: o complexo ambiente cultural, político, social e religioso da África Oriental na época colonial. O mundo imperial inflexível de 1899, “que se tornara uma extensão da respeitabilidade britânica”, e os finais de década de 1950, nas vésperas da independência, asfixiados “pelo servilismo colonial, religiosidade medieval e mentiras sobre o decurso da história”. No final da obra, o narrador, tomando conhecimento de um antigo diário, consegue estabelecer o traço de união entre as duas histórias de amor, projetando-as no futuro. Um livro fascinante que une a tradição narrativa da Africa Oriental com uma estrutura de romance herdeira do modernismo literário europeu. Cavalo de Ferro

Konstandinos Kavafis

Os Poemas

Esta magnífica edição bilingue, traduzida por Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, reúne a obra poética completa de Konstandinos Kavafis. Poeta grego (1863/1933), nasce e vive praticamente toda a sua vida em Alexandria, no Egipto. Concilia, na sua obra, duas formas de expressão opostas: a coloquial e a erudita, por vezes arcaizante. Os seus poemas, sem recurso à metáfora ou a efeitos de retórica, reportam-se, essencialmente, à Alexandria do período Helenístico e Greco-Romano (de 325 aC a 400 dC). Através deles, procura estabelecer um paralelo entre a cidade dessa época e o mundo moderno, deixando prevalecer um sentimento de decadência de culturas. Temas mitológicos e históricos (Pois O Deus Abandona Marco António), elementos eróticos de natureza homossexual – entre eles o culto da beleza física e a obsessão do desejo (Dias de 1908) -, e alusões à decadência e à mudança (À Espera dos Bárbaros) conjugam-se para definir o tom de ironia, mas também de profundo lamento pela transitoriedade das coisas que caracteriza a obra deste grande poeta. Relógio d’Água

Itamar Vieira Junior

Salvar o Fogo

O vencedor do prémio Leya 2018 está de regresso com um novo romance onde, uma vez mais, as mulheres têm um papel preponderante. Em Tapera do Paguaçu, uma pequena localidade da Bahia dominada pelos poderes da igreja, vivem Luzia, o seu irmão Moisés e o pai Mundinho. A mãe morreu, os irmãos “caíram no mundo” e Luzia viu-se obrigada a tomar conta deles. Desprezada pelo povo, vista por muitos como uma feiticeira que consegue controlar o fogo, Luzia passa a trabalhar como lavadeira do mosteiro, educando o ‘Menino’ de forma a que ele possa estudar na escola dos padres e assim seguir um caminho diferente do dos irmãos. Mas a vida no mosteiro, em cujas “entranhas vive a história da aldeia”, e a convivência com Dom Tomás marcam Moisés de tal maneira que resolve abandonar a aldeia e ir para a capital. Anos mais tarde, com o pai à beira da morte os irmãos voltam a reunir-se, “contidos, com tantas contas por ajustar, com tanto por dizer, se é que algum dia seria possível perdoarmos em silêncio uns aos outros as mágoas que nos provocamos”. Arrependida pelos silêncios e magoada pelas mentiras, Luzia ganha novo fôlego e luta como nunca contra as injustiças. “Seu nome é coragem, e já não teme a morte.” Sara Simões Dom Quixote

George Orwell

Dias da Birmânia

Um sinal de nascença deformante no rosto de Flory, negociante inglês de madeiras, fá-lo sentir-se condenado à solidão e à inadequação social. Quando se estabelece na Birmânia não consegue adaptar-se a um regime colonial desumano que fomenta o servilismo dos nativos e compactua com a insídia e a corrupção. Ao escolher como único amigo um médico birmanês hostiliza irremediavelmente a comunidade britânica a que pertence. A experiência de George Orwell (1903-1950) como agente da polícia na Birmânia inspirou este seu primeiro romance que traça um retrato sem concessões do domínio colonial britânico. O autor de 1984 elege o clube britânico local, exclusivo para membros brancos, como símbolo e último reduto do Império, lugar de culto das suas tradições e costumes (o ténis e o bridge, o whisky e o gin, a leitura de jornais, revistas e livros ingleses) e, simultaneamente, de afirmação dos valores da superioridade, elitismo e intolerância: “Nada de nativos neste clube!” Guerra & Paz

Vivant Denon

Sem Amanhã

Nobre francês, Vivant Denon (1747–1825) escapou à guilhotina durante a Revolução Francesa. Mais tarde, veio a cair nas graças de Napoleão, que acompanhou durante a campanha militar, munido de material de desenho, tendo depois recebido do imperador a nomeação para primeiro diretor do Museu do Louvre, que mantém hoje o seu nome numa das galerias. Sem Amanhã foi um dos poucos textos que deixou: 40 páginas que tiveram existência atribulada na sua fixação original, e que geraram um culto, impulsionado por gente como Anatole France, Honoré de Balzac, Milan Kundera e Louis Malle (cuja adaptação e atualização do texto de Denon por Louise de Vilmorin, deu origem ao filme de 1958, Les Amants). Narrado na primeira pessoa, por um jovem de 20 anos (que poderá corresponder a um relato autobiográfico do próprio autor), ingénuo nas coisas do amor, conta-nos a sua experiência de uma noite com uma aristocrata que, vem a saber, mantinha várias relações amorosas (mais ou menos breves) fora do casamento, estagnado com um marido indiferente. Estamos em território da libertinagem no feminino, extremamente bem contextualizado pela apresentação e pelo apêndice final da autoria do tradutor, Aníbal Fernandes. Ricardo Gross VS. Editor

 

Miguel Torga

Teatro

Adolfo Correia da Rocha, conhecido pelo pseudónimo Miguel Torga (1907/1995), distinguiu-se como poeta, contista e memorialista. Paralelemente, exerceu também uma importante e reconhecida atividade de dramaturgo. Este volume reúne as peças de teatro mais significativas de Miguel Torga: Terra Firme (1941), Mar (1941) e O Paraíso (1949). Várias vezes levadas à cena em Portugal e no estrangeiro, tiveram algumas representações marcantes, como a de Terra Firme pelo TEUC (com encenação de Paulo Quintela), e as de Mar pelo Teatro Moderno da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, por um grupo de estudantes do King’s College de Londres (sob a direcção de Ruben A., que fez também uma adaptação da peça para a BBC), pelo Teatro Experimental do Porto (com encenação de António Pedro), pelo CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra) e pelo Teatro Experimental de Cascais (com encenação de Carlos Avilez e cenário de Almada Negreiros). Peças representativas do carácter humanista da obra de Miguel Torga. O autor escreve em O Paraíso: “O homem fabrica sem querer as suas próprias fatalidades. E é nelas que realiza, positiva ou negativamente, a grandeza de que é capaz.” Dom Quixote

Mascarada Política – O Carnaval na obra de Rafael Bordalo Pinheiro

Rafael Bordalo Pinheiro (1846-1905), homem da imprensa, desenhador, caricaturista, ceramista, assume-se como uma figura incontornável da segunda metade do século XIX. Figura do seu tempo, não poderia deixar de retratar o Entrudo enquanto festa pública repleta de múltiplos significados. O catálogo da exposição Mascarada Política – O Carnaval na Obra de Rafael bordalo Pinheiro, patente no Centro de Artes e Criatividade de Torres Vedras até ao próximo dia 30 de junho, com edição bilingue português/inglês, profusamente ilustrado, inclui alguns originais nunca antes mostrados. A publicação mergulha na obra artística bordaliana, olhando para o Carnaval, não apenas como um momento de inversão da ordem social estabelecida – característica intemporal da folia carnavalesca –, mas como um fenómeno histórico e sociológico que contempla inúmeros significados e objetivos sociais, políticos, económicos e religiosos. O catálogo e a exposição são produto de uma primeira investigação sobre a forma como Rafael Bordalo Pinheiro retratou o Carnaval, data importante nos divertimentos públicos de Lisboa, e a relevância dos ritos e das práticas carnavalescas na sua abundante produção jornalística, caricaturista e decorativa. Câmara Municipal de Torres Vedras / Centro de Artes e Criatividade de Torres Vedras