Maria de Medeiros

'Aos Nossos Filhos' "foi integrando o obscurecimento do Brasil e os retrocessos que foram acontecendo."

Maria de Medeiros

A mais recente longa-metragem de Maria de Medeiros, Aos Nossos Filhos, estreia nos cinemas a 1 de junho. O filme adapta a peça homónima escrita pela atriz brasileira Laura Castro. A história segue Vera, uma mulher corajosa, perseguida e torturada pela ditadura, que tem de lidar com as próprias contradições ao ser confrontada com o passado e com a atual dificuldade em aceitar a relação homossexual da filha que deseja ser mãe com a companheira. Conversámos com a realizadora sobre o filme que aborda maternidade, sexualidade, adoção e inseminação artificial, mas também o passado do Brasil.

O filme é uma adaptação da peça homónima da atriz, cantora e compositora Laura Castro, uma peça onde a Maria participou como atriz. Como surgiu a ideia de adaptar esta obra para cinema?

Recebi o convite da Laura, que não conhecia, e achei a peça extremamente interessante. Para mim, foi a descoberta de todo um mundo, todo o processo do que significa ter filhos num casal homo afetivo. A todos os níveis: administrativo, saúde, familiar, de amizades. É um processo muito complexo e é preciso desejar mesmo muito ter a criança. Achei que a peça tinha essa dimensão de verdade e tinha de facto, porque a Laura tem três filhos com a Marta, a sua companheira da altura. Achei também o diálogo entre as gerações presentes na peça muito interessante. Fui para o Brasil onde estivemos em vários palcos, em muitas cidades, durante três anos. Rapidamente, não sei se é defeito de realizadora, vi o filme. A peça é uma longa conversa, de uma noite, entre mãe e filha. Então pensei: vamos desenvolver todas as temáticas que são abordadas na peça e que surgem só como pistas. Tinha o desejo de ver as personagens das quais falávamos, mas que não se viam. Queria ir mais longe e escrever a narrativa, sempre com essa ideia de verdade, acompanhando a atualidade de tudo o que se estava a passar no Brasil.

Como reagiu a autora?

A Laura disse logo que sim ao filme, gostou muito da ideia e rapidamente começámos a adaptar. A peça foi escrita num momento bastante solar, de confiança, um momento feliz do Brasil, em que o país estava em plena democracia e adiantado em questões homo afetivas. Foi nesse contexto de liberdade que se desenvolveu a peça, já o filme foi integrando o obscurecimento do Brasil e os retrocessos que foram acontecendo. Nesse sentido o filme encheu-se, muito mais, de elementos de angústia.

Esta é uma história sobre o poder que os traumas do passado têm no decurso da vida. Neste caso em particular as consequências da ditadura brasileira. Fez algum tipo de pesquisa sobre o tema? Falou com vítimas da ditadura?

Antes deste filme tinha feito um documentário, que é uma longa-metragem. Foi uma incrível coincidência porque eu tinha já pesquisado este momento histórico durante anos. O documentário foi-me proposto, por volta de 2010, pela Comissão de Amnistia e Reparação do Brasil que estava a fazer um trabalho fantástico no sentido da reparação e ajuda às vítimas da ditadura militar. Nesse documentário, que se chama Repare Bem, eu já seguia uma mãe, a Denise Crispim, e a filha, que tiveram um itinerário terrível. A filha de Denise, a Eduarda, nasceu numa prisão rodeada por soldados armados. O pai foi morto brutalmente depois de 109 dias de tortura. Após essa a morte deixaram a Denise em liberdade condicional. Ela acabou por ir para o Chile onde o Allende estava a ajudar brasileiros. No Chile, vive o golpe de estado do Pinochet e foge para a embaixada italiana e acaba por ficar 40 anos em Itália. Nesse documentário pude observar como os traumas, o sofrimento da geração da mãe se transmitiram à filha, apesar da sua tentativa de a proteger dessas dores. Com agravante que a segunda geração não viveu a situação, tem apenas relatos, ideias… Observei isso e foi algo que pude desenvolver nesta ficção. Além disso fui lendo muitos testemunhos das vítimas da repressão e da ditadura.

A peça parte da experiência pessoal de Laura Castro. Em palco a Maria interpreta o papel central, a mãe. Essa proximidade à história também influenciou a realização do filme?

Com certeza. Na verdade a peça foi escrita para a atriz Marieta Severo que na altura não a podia fazer. A Laura estava à procura de uma atriz, e foi todo um conjunto de coincidências incríveis. A Laura escreveu a peça a ouvir a canção do Ivan Lins, Aos Nossos Filhos, e o título da peça ficou o da canção. Essa música guiou-a sempre ao longo do tempo de escrita. Quando estava à procura de uma atriz, ouviu-me a cantar a canção. Cantei-a no contexto do documentário Repare Bem. Foi assim, através da canção, que nos conhecemos. Depois quando pensámos fazer o filme, era para mim evidente que o papel da mãe tinha que ser interpretado pela Marieta. Em França, quando o filme estreou, foi editado um DVD duplo, onde está a peça e o filme. É muito interessante, porque deparamo-nos com duas Veras completamente diferentes: a da peça, como referi anteriormente, é mais solar, mais excêntrica, e a do filme, muito mais sofrida. Poder comparar as duas obras é um exercício fascinante.

A escolha da Marieta Severo foi óbvia. Como foi feito o restante casting?

A personagem Tânia, filha de Vera, e a sua companheira, são as próprias Laura Castro [atriz e autora da peça] e Marta Nóbrega que foi companheira na vida real de Laura e de quem já estava divorciada quando fizemos o filme. Foram as duas muito valentes ao aceitarem interpretar estes papéis. Foi um desafio que assumiram com muita coragem.

Esta é também uma história que reflete sobre a vida moderna. De certa forma mãe e filha são ambas revolucionárias, mas em épocas diferentes. Concorda?

Sim, tudo foi pensado para que as situações se possam espelhar. Há ainda a intenção de mostrar que cada geração tem as suas prioridades, mas também os seus preconceitos. Há coisas que podem chocar a geração das mães, mas algo que eu também observei no documentário, é que a nova geração é, em certos aspetos, mais conservadora do que a das mães. No texto original, a mãe não é nada conservadora, no entanto, quando a filha lhe diz que está à espera de um bebé que cresce na barriga da companheira, atinge o limite de abertura de espírito. Depois o neoliberalismo da filha, ao aceitar, sem nenhum problema, que tudo tem um valor monetário, choca terrivelmente a mãe. O filme retrata também como as duas gerações têm questões que entram mutuamente em choque.

Podemos afirmar que este é um filme feminista?

Absolutamente! Considero que todos os meus filmes são feministas. Fazer os Capitães de Abril foi uma luta feminista, muita gente tentou dissuadir-me e questionavam-me porque não fazia uma coisa mais feminina. Para mim foi uma reivindicação feminista poder fazer um filme de guerra. Mas os Capitães de Abril era um filme onde a maioria das personagens são masculinas. Acredito que foram precisos todos estes anos para que eu sentisse que tinha a maturidade necessária para abordar um tema principalmente feminino.

O cinema é para si sinónimo de interpretação e realização. Sente-se melhor em frente às câmaras ou atrás delas?

Onde me sinto melhor é na transição. No passar de uma coisa para a outra. Acho que uma atividade alimenta a outra, enriquece a outra. Aliás, foi exatamente o que aconteceu. Foi do meu trabalho como atriz no teatro que surgiu a vontade de fazer o filme. Entretanto voltei para o teatro, onde recentemente terminei, em Paris, uma peça de Jean Cocteau [Les Parents Terribles]. É nesse vai e vem que me sinto melhor, não estar estagnada numa só atividade.

França é a sua casa, Portugal o país de origem, tem trabalhado em diversos países. Há novos projetos?

Sim, estou a preparar um novo projeto que está ligado a Portugal. Mas acho que ainda é um bocadinho cedo para falar sobre isso. Posso dizer que é uma nova longa-metragem.