Surma

"Quis dar às pessoas um álbum que fosse para toda a gente, sem géneros nem rótulos"

Surma

Cinco anos depois de Antwerpen, Surma está de regresso com aquele que é o seu trabalho mais pessoal. Com um percurso notável no universo da música independente, a artista já atuou em palcos por todo o mundo, tendo trabalhado em projetos das mais diversas áreas artísticas. A 17 de dezembro apresenta, na Culturgest, o seu mais recente disco, Alla. O espetáculo foi pensado e desenhado de propósito para esta sala e promete não deixar ninguém indiferente.

De onde vem o teu nome artístico?

Tinha vários nomes apontados num bloco de notas, mas que não faziam muito sentido. Um deles era la mouche du coche [risos], uma expressão de que gosto muito. Era um dos 30 que tinha apontado, mas que ainda assim não me parecia ser o nome perfeito. Um dia, estava a ver um documentário no Discovery Channel sobre a cultura da Etiópia e surgiu essa palavra, surma, que é o nome de um povo indígena. Achei fascinante porque fiquei a perceber que eles não ligam muito aos bens materiais, vivem um dia de cada vez, são muito agarrados à família, há um lado muito humano nesses povos. Achei essa ligação bonita de fazer à música. Gostei do nome por ser curto, mas também por todo o simbolismo. Fiquei a pensar nisso durante vários dias, mas depois acabou mesmo por ficar, até em jeito de homenagem.

És uma artista muito completa: a música anda de mãos dadas com a imagem. O lado visual é muito importante para ti?

Diria até que, quando vou para estúdio compor, o lado visual acaba por se sobrepor ao musical, o que pode parecer estranho, tendo em conta que a minha profissão é a música. A literatura também me inspira muito. Crio bandas sonoras na minha cabeça enquanto estou a ler. É estranho, mas a parte visual é a primeira coisa que me vem à cabeça quando estou a compor.

Caracterizar a tua música é muito difícil. Quais são as tuas maiores referências musicais?

Costumo dizer que a minha deusa inspiradora, desde os meus treze ou catorze anos, é a Saint Vincent. Apesar da minha música não ter nada a ver com a dela, ela inspira-me muito a nível estético e pessoal, porque tenta criar um universo muito próprio. Cada disco que lança é sempre o oposto do anterior, cria personas completamente diferentes de ano para ano… Quero ser como ela quando for grande [risos]. É uma Bowie feminina. É isso que quero ser enquanto artista: criar um mundo meu, um universo próprio. Ela inspira-me em todos os aspetos, é a minha musa.

Passaram cinco anos desde o teu primeiro disco, Antwerpen. Neste espaço de tempo sentes que cresceste como artista?

Estes cinco anos também estão relacionados com a falta de tempo que tive para criar. Trabalhei muito em teatro, cinema, moda, dança… Estas áreas influenciaram muito o álbum que criei este ano. Tento ir beber a várias áreas artísticas. Não gosto de me fechar apenas no mundo da música. Acho, sinceramente, que foi o tempo certo, até porque agora tenho maturidade para falar de temas como o bullying ou a androgenia, que há uns anos não tinha. Comecei a ver a vulnerabilidade como uma força e não como uma fraqueza. Sinto que sou uma pessoa muito diferente de há uns anos para cá, talvez por fazer terapia – que também é um tema que não deve ser tabu. Estou mais livre e mais solta, estes cinco anos deram-me outra perspetiva, fizeram-me ver coisas de uma forma diferente de quando lancei o Antwerpen.

Que significado tem o nome do disco, Alla?

Foi muito complicado chegar ao nome do álbum. Também tinha nomes escritos num bloco de notas, mas nenhum deles fazia sentido. Tentei perceber o que é que queria transmitir com este álbum, que mundo queria levar às pessoas. Quis explorar um universo sem qualquer género ou rótulo. Comecei a ver palavras em várias línguas e encontrei alla, que é uma palavra sueca sem género, que significa ‘tudo’, ‘todos’. Fiquei 100% resolvida em relação ao nome, porque fazia todo o sentido. Falei com uma amiga minha sueca e perguntei se era exatamente esse o significado da palavra e ela confirmou. Quis dar às pessoas um álbum que fosse para toda a gente, sem géneros nem rótulos.

Alla tem colaborações de Ana Deus, noiserv, Selma Uamusse, Joana Guerra, Cabrita, Victor Torpedo e João Hasselberg, artistas de diferentes áreas musicais. Como foi conjugar a individualidade musical de cada um deles com a tua?

São amigos músicos de longa data, com quem queria trabalhar há muito tempo. Aconteceu tudo de forma fluida, sem qualquer pressão. As demos já estavam todas fechadas quando as enviei para cada um dos convidados, e pedi para eles fazerem o que quisessem com as músicas. Foram dias incríveis em estúdio, eles trouxeram as suas raízes para as canções, que era o que eu queria. É um álbum que tem jazz, tem punk, tem contemporâneo. Era isso que eu queria, não me restringir num certo rótulo de género musical.

“Recebi várias mensagens de pessoas a passarem por situações de depressão, que me disseram que a ‘Islet’ as tinha levado a um sítio bonito e isso fez-me sentir mesmo feliz”

O disco aborda temas muito pessoais como a androgenia ou o bullying. Foi difícil falar abertamente sobre estes temas?

Foi um processo muito terapêutico. Quando estava a gravar a Islet era como se estivesse num processo de terapia com o Rui [Gaspar], que é o meu parceiro no crime e produtor do álbum. Falámos muito sobre uma situação específica da minha vida. Ele achou que a música devia ser um hino para mim e para as pessoas que passaram por situações semelhantes. Questionei-me sobre se deveria falar sobre isto, se devia mostrar este meu lado, mas concluí que sou uma sortuda por estar neste meio e por ter uma voz ativa. Sinto que tenho de ter esse papel. Quis que a música fosse uma mensagem de esperança, força e persistência para quem a ouvisse. Isso levou-me a ter uma ideia para o vídeo que seguisse a mesma linha: pegar numa situação do passado, mas que no fundo me ajudou a crescer. Costumo dizer que agradeço aos bullies por me terem feito ser a pessoa que sou hoje, com muito mais força e com uma outra perspetiva sobre diferentes situações. No fundo, foi um processo terapêutico para mim, e espero que seja também para quem ouvir, que passe uma mensagem bonita de força. Foi um bocadinho difícil partilhar este lado pessoal, mas já estou mais segura com este passo.

A música pode ser uma catarse também para quem a consome?

Sem dúvida. Ouço muitos artistas que partilham um lado pessoal nas suas músicas, e às vezes é pesado porque, de certa forma, me sinto ligada às letras ou até a nível instrumental. É um processo difícil esta partilha. São coisas porque passámos e interrogamo-nos se as queremos partilhar com o mundo. Mas, acho que foi esta questão da vulnerabilidade que me fez avançar. É bom falarmos nisto porque há muitas pessoas que estão a passar por aquilo que eu passei. Quero que não se sintam sozinhas. Recebi várias mensagens de pessoas a passarem por situações de depressão, que me disseram que esta música as tinha levado a um sítio bonito e isso fez-me sentir mesmo feliz. Nunca pensei que esta música as tocasse de forma tão pessoal. É isto que quero enquanto artista.

Qual a ideia por trás do vídeo de Islet ?

Partiu de uma ideia muito específica, que era dividir o meu cérebro em quatro salas que representam fases específicas da minha vida, e haver uma mutação da personagem dentro do vídeo. Trabalhar com os Casota Collective é sempre inacreditável porque se eu digo ‘mata’, eles dizem ‘esfola’ [risos]. A Tilda Swinton sempre me inspirou bastante, pelo seu lado andrógeno e pelos papéis que tem desempenhado. O último filme que ela fez com o [Pedro] Almodóvar, A Voz Humana, foi a grande referência para este vídeo. Foi dos primeiros vídeos em que me assumi como personagem e atriz. Foi extraordinário explorar esse lado.

Tens tocado em vários tipos de palcos, de grandes festivais a salas mais intimistas. As emoções que os concertos te provocam diferem consoante o palco?

Cada palco é um palco, cada atuação é diferente, mas quando estou a atuar entro sempre dentro da minha bolha. Como se a minha alma saísse do corpo e só voltasse quando saio do palco. Às vezes, até fico zonza da adrenalina toda e do que dou em palco. É muito estranho como por vezes vejo fotos ou vídeos dos meus concertos e há coisas que não me lembro de ter feito. É mesmo difícil explicar aquilo que sinto quando estou a tocar. A emoção é sempre a mesma, esteja a tocar para uma pessoa ou para mil, porque entro sempre numa bolha que é difícil de explicar, fico uma pessoa totalmente oposta àquilo que sou no dia-a-dia.

Também tens feito concertos para bebés. Como tem sido a reação desse público tão especial?

Se há público sincero são as crianças. O primeiro concerto que fiz para bebés foi mesmo muito emotivo. Tenho um arranjo para uma orquestra de sopros, as músicas ganham uma dinâmica mesmo bonita ao vivo e há um espetáculo de luzes muito intimista. Ver bebés e crianças até aos 5 anos a reagir e a perceber como absorvem a música é uma experiência muito especial. Há um momento em que eles têm oportunidade de tocar nos instrumentos e é muito bonito ver as reações. Ou odeiam ou amam. Uma vez um dos bebés fugiu do colo da mãe e foi a gatinhar ter comigo, foi muito cómico. Também é muito engraçado ver a interação deles com os instrumentos. Depois há uns que gritam imenso, que não querem estar ali [risos]…

Imaginas-te a escrever um disco para crianças?

Já pensei muito nisso, gostava de fazer um disco que entrasse no universo deles. Tentar explorar como é que eles absorvem a música, quais são os sensores em termos de ondas sonoras.

O concerto que levas à Culturgest no dia 17 dezembro foi pensado de propósito para aquele palco. O que estás a preparar?

Os concertos de apresentação foram muito pensados. O da Culturgest foi ainda mais pensado em termos de cenografia. Há uma parte performativa muito ativa, com vários convidados. O público que me acompanha está habituado a ver-me sozinha em palco, com a roupa do dia-a-dia. Com os concertos de apresentação do Alla vai ser uma experiência completamente diferente: vou tocar em trio, ter um outfit específico, vários convidados… vai ser uma dinâmica totalmente diferente do Antwerpen. As pessoas podem amar ou odiar, quero é que questionem e que fiquem a pensar no que acabaram de ver. É esse o objetivo destes concertos.

Quando sai o próximo vídeo?

Queria criar mais dois vídeos que fossem uma continuação do primeiro, ter uma trilogia, mas ainda não sei quando haverá tempo e orçamento para isso [risos]… já tenho muitas ideias, talvez lá para fevereiro ou março.