Zia Soares

"As artes, nomeadamente as performativas, têm o papel vanguardista de começar a refletir sobre as questões primeiro do que as outras áreas da sociedade"

Zia Soares

A abrir o ano em que passa uma década sobre a estreia do seu primeiro espetáculo – Faz escuro nos olhos –, o Teatro GRIOT leva a cena uma das mais importantes peças do dramaturgo nigeriano Wole Soyinka, Prémio Nobel da Literatura em 1986. Uma Dança das Florestas é uma poética e fantástica alegoria crítica sobre a África pós-colonial, aqui dirigida pela fundadora e diretora artística da companhia, Zia Soares, num espetáculo com estreia agendada para 14 de janeiro*, no São Luiz Teatro Municipal.

Depois de A Raça Forte, este é o regresso do Griot ao teatro de Wole Soyinka. Porquê esta peça, a primeira e uma das mais famosas do autor?

A peça tem um universo extraordinário, povoada de personagens que estão vivas e, ao mesmo tempo, mortas, em que uns são espíritos da floresta, outros deuses ou orixás. De alguma forma, tudo isso lhe confere um sentido fantasioso, mas também um humor muito diferente daquilo que tem sido habitual no trabalho do Teatro Griot. O voltar ao Soyinka foi, precisamente, por vermos neste texto hipóteses para propor e explorar múltiplas leituras. Uma Dança das Florestas é um texto que questiona as relações de poder de forma muito inteligente e criativa. E, também muito simbólica, que é um território que a mim enquanto artista me interessa especialmente.

Segundo a história, a peça está rodeada de uma controvérsia relacionada com o facto de ter desagradado bastante à classe dirigente pós-colonial da Nigéria, em 1960.

Convém lembrar que a peça foi uma encomenda do governo pós-colonial para celebrar a independência do país. Na verdade, Uma Dança das Florestas encerra imensas críticas, que passam pela África colonizada e vão até às independências e à base em que elas foram construídas. Toda esta temática é muito profícua para criar, para explorar espaços menos evidentes e mais lacunares destas narrativas. E esta peça oferece-nos, como poucas, essa possibilidade.

No espetáculo, à peça junta textos seus. É a sua condição de africana, tal como o autor, que a inspira a fazê-lo?

Não consigo, ou melhor, não quero trabalhar sem pensar os espetáculos através das minhas palavras. Por isso mesmo, às palavras do Soyinka juntei as minhas como se, em momentos pontuais, convergíssemos. O Soyinka é um homem africano, mais velho do que eu, negro, também com formação fora de África, mas que, pelo menos nos últimos anos, vive sobretudo na Nigéria. Eu sou uma mulher negra, nascida em Angola, mas que cresceu, estudou e vive na Europa, embora agora procure estar cada vez mais em África… Parece um sacrilégio estar a “conspurcar” com palavras minhas o texto do grande professor Wole Soyinka, Prémio Nobel da Literatura. Mas ele não sabe, e espero que não venha a ler esta entrevista! [risos]

Enquanto angolana, e tendo em conta o processo de descolonização que aconteceu no seu país, reconhece as críticas que Soyinka, na peça, aponta àquela Nigéria que acaba de conquistar a independência?

Acho que se podem encontrar pontos comuns. Em primeiro, foram países que estiveram durante séculos sobre o domínio de outro e, quando conquistaram as suas independências, passaram pela incógnita de como se organizar política e socialmente. Logo, questiona-se como é que uma herança do colonialismo pode funcionar num país que é agora independente? Na peça, surge o exemplo de um totem que é erigido para a celebração da independência, mas a base em que é construído é toda ela bastante questionável. Ora, essa é uma reflexão que se pode aplicar a todos os países africanos que passaram pelo processo.

Independentemente de ser uma das vozes mais notáveis e influentes da África pós-colonial, a obra de Soyinka é universal…

Esta peça, por exemplo, pode ser lida para além do contexto africano. Ela fala sobre o poder, sobre quem o detém e como o usa, as relações determinadas pelos jogos e intrigas, a manipulação… Ou seja, são temas presentes nas nossas vidas e em qualquer lugar. Contudo, há um a que dou especial importância neste texto: o do pensamento crítico. Num sistema necropolítico, quem o possui é o primeiro a ser aniquilado. Em Uma Dança das Florestas, o personagem que o representa está morta, mas é convocado por um deus num dia de ritual. Ao voltar à vida, regressa também ao passado, ao dia em que é condenado à morte, e diz: “parece que comecei o contágio de uma nova doença.” Estranhamente, hoje, na altura em que vivemos uma pandemia, seria bom que o contágio a que estivéssemos sujeitos fosse, tão só, o que ele anuncia – o do pensamento crítico.

Este espetáculo era para ter sido encenado por uma figura iminente do nosso teatro, e habitualíssimo colaborador do Griot, Rogério de Carvalho…

Quando pensei o espetáculo para a companhia era, de facto, para ser o Rogério a encená-lo. Porém, houve um percalço de saúde e também tendo em conta todo este contexto de pandemia, mais a mais com a idade avançada que tem, decidimos que seria conveniente ele abandonar o projeto. Mas, chegámos ainda a trabalhar os dois na dramaturgia, embora a que ficou seja completamente diferente.

Como funciona o processo de criação quando trabalha um texto já publicado, conhecido e tão debatido como este?

Devo dizer que trabalho pouco o texto porque não é daí que parto. Trabalho muito mais com as imagens, os gestos e os movimentos, e por isso os meus espetáculos têm de envolver sempre pessoas das artes visuais, da dança ou da música. Curiosamente, são universos que me conseguem potencializar muito mais artisticamente e, daí permitem que mergulhe num formato ou num pensamento de teatro mais formal. Embora, como é o caso deste espetáculo, o texto tenha de ter uma temática que me interesse, me inquiete e me dê vontade de traduzir em cena.

Mas, numa companhia como o Teatro Griot, que já encenou outros mestres da palavra como Pepetela, Shakespeare, Al Berto ou Genet, essa secundarização do texto pode surpreender…

Claro que me interessa ter um bom texto, ter uma boa autora ou autor, com um universo poético e filosófico interessante. Mas, o texto é aquilo que aparece no fim, depois de trabalhar com os performers o corpo, a voz, a sonoridade, o gestuário e outros aspetos mais plásticos. E faço-o sempre em colaboração com a Neuza Trovoada enquanto artista visual; ou com o Chullage, o músico e compositor da companhia; ou, no caso particular deste espetáculo, com a coreógrafa Vânia Doutel Vaz, que está a colaborar connosco pela primeira vez.

“Esta peça fala sobre o poder, sobre quem o detém e como o usa […], ou seja, são temas presentes nas nossas vidas e em qualquer lugar.”

Mais de uma década depois da sua formação, que reflexão lhe merece um projeto tão singular no teatro português como é o Griot, fundado e constituído por artistas angolanos negros?

É muito difícil fazê-lo, até porque essa reflexão é constante, é quotidiana, e não se esgota. Mas é importante apontar o lugar instável em que esta companhia se encontra a vários níveis. Desde logo o financeiro, enquadrado no panorama geral do setor; mas também esse lado de sermos uma companhia com artistas negros. Hoje, dentro do possível, tento perceber este percurso com um outro rigor e consciência que, provavelmente, não teria quando fizemos o primeiro espetáculo…

O qual cumpre, em abril, dez anos que estreou…

No Institut Français du Portugal. É interessante que o Faz Escuro nos Olhos foi um espetáculo todo ele pensado não só tendo em conta o universo do encenador, o Rogério de Carvalho, e os textos de múltiplos autores, como foi conscientemente assente na imobilidade – éramos um conjunto de atores que passavam grande parte do tempo imóveis, a interpretar monólogos de dez a 15 minutos. Olhando hoje para esse espetáculo, lembro como isso surpreendeu o público, um público muito pouco habituado a sentar-se numa plateia e ver pessoas negras. Acho que aquilo que esperavam era ver-nos, atores negros, a movimentarem-se muito, a dançarem, e não a falar, falar, falar…

Mas respiram-se tempos de mudança, e vocês notam-nos, ou não?

Quando esse espetáculo estreou digamos que a plateia era composta por uns 98% de pessoas não negras. E os dois por cento de negros eram nossos familiares ou amigos. Recentemente, quando há uns meses estivemos na Culturgest com O Riso dos Necrófagos, estou muito à vontade para afirmar que a esmagadora maioria da plateia era negra, e uns 60% seriam mulheres. Isto é maravilhoso…

E é uma forte demonstração de mudança…

Há de facto mudança, mas seria falso eu dizer que essa mudança tem reflexo imediato na vida das pessoas, sobretudo na da população negra. O que me parece ser verdadeiro é haver uma possibilidade real de mudança, e isso decorre de uma crescente abertura por parte das pessoas para alterar alguma coisa. Se estamos a fazer uma reflexão profunda sobre tudo isto, diria que não. Acho que andamos ainda sobre a superfície, e isso prende-se também com essa tendência tão humana de ao surgir a novidade a agarrarmos, normalmente, pelo lado mais fácil e visível. Claro que é importante falar de episódios de racismo quotidiano, mas a mudança efetiva chegará quando atingirmos o cerne da questão, que é bastante mais profunda e complexa.

De que modo é que o Teatro Griot contribui para o aprofundar da questão?

O modo como o fazemos é, provavelmente, mais abstrato; porém, é real. O visível é impossível esconder, e não serei eu a dar-me ao trabalho de o mostrar a quem não o quer ver. Interessa-nos trabalhar sobre aquilo que não está falado, não está refletido, não está discutido. As artes, nomeadamente as performativas, têm o papel vanguardista de começar a refletir sobre as questões primeiro do que as outras áreas da sociedade. E o Griot tem contribuído, desde o modo como apresentamos as nossas criações à relação que estabelecemos com as comunidades negras. Tanto nos apresentamos na Culturgest ou no São Luiz como no Vale da Amoreira ou na Quinta do Mocho. E isso é ainda um lugar singular, embora se escute já, nas artes e na sociedade, um murmúrio anunciando que algo está efetivamente a mudar.