Raquel André

Na 'Exposição de Amantes' "procuro que cada visitante possa ter uma experiência pessoal e única"

Raquel André

Ao longo dos últimos sete anos, Raquel André colecionou 278 amantes por todo o mundo, tendo guardadas milhares de fotografias dos encontros que manteve. Esses registos de intimidade, recolhidos ao lado de desconhecidos que, num rigoroso exercício de colecionismo, a autora e atriz tem vindo a apresentar em palcos nacionais e internacionais através do espetáculo Coleção de Amantes, tornou-se agora uma instalação performativa. No Teatro do Bairro Alto, entre 5 e 12 de novembro, a mulher que coleciona o impossível – ou seja, pessoas – propõe uma outra perspetiva (e, com ela, uma nova abordagem) sobre a coleção que despoletou um dos percursos mais curiosos e surpreendentes do teatro português da atualidade.

Esta Exposição de Amantes pode ser entendida como uma revisitação da Coleção de Amantes, que o público tem vindo a conhecer ao longo dos anos através do espetáculo?

A exposição corresponde à vontade que sempre tive, desde o início da coleção, de não a limitar a um espetáculo de teatro. Até porque a Coleção de Amantes é não só o projeto fundador de todo um trabalho que me vem ocupando ao longo dos últimos anos, como continua a ser o espetáculo que mais apresentei, tanto em Portugal como por todo o mundo.

Estamos perante um objeto que se aproxima mais de uma exposição num museu do que de um espetáculo de teatro?

Aqui, o público é convidado a entrar, literalmente, numa casa de seis por oito, um T1. Ora, nessa casa, projetada pelo [arquiteto e cenógrafo] José Capela, todos os materiais, do chão às paredes, da cama ao sofá, das peças decorativas aos utensílios, estão impressos com fotografias (selecionadas por mim, pelo Capela e pelo seu assistente, o António [Pedro Faria]), de um total de sete mil, que integram a Coleção de Amantes. Por exemplo, o sofá é estofado com uma fotografia saída de uma seleção que reunia todas as fotos que tirei junto de amantes em sofás; como estamos no espaço da sala, o mesmo sucederá com a divisória ou com as porcelanas, as almofadas ou os guardanapos.

O público poderá, portanto, percorrer a casa in loco?

Sim, numa lotação muito reduzida de quatro espetadores de cada vez, sendo que dois entram pela casa em lugares diferentes e os outros dois estarão num plano acima…

Mas, todos guiados pela Raquel…

Os quatro visitantes estão munidos de aparelhos de audiodescrição, sendo que cada um vai sendo guiado ao som da minha voz e da música de Odete. Conforme vão percorrendo a casa, vão sendo partilhados os episódios de intimidade que vivi através daquelas fotografias. Acontece então que os dois visitantes no interior da casa se encontram e, nesse momento, cabe-me a mim guiá-los de modo a proporcionar a ambos uma experiência de intimidade com um desconhecido, à semelhança do que faço nos meus encontros e que são a matéria do espetáculo Coleção de Amantes.

E os dois espectadores no plano superior da casa?

São como testemunhas que, por estarem numa plataforma elevada, conseguem perceber a casa como um labirinto. Mas, não é só a casa que é um labirinto, é a própria intimidade enquanto sítio onde nos perdemos, onde não sabemos onde começamos e onde acabamos. É essa perceção que lhes vou transmitindo através da audiodescrição, para que eles acabem por viver uma experiência voyeurística com o encontro entre os outros visitantes.

Portanto, cada grupo vai ter da Exposição de Amantes perspetivas radicalmente diferentes?

Vamos ainda um pouco mais longe. Cada um dos espectadores vai ter uma experiência totalmente diferente do outro, mesmo que dois deles percorram a casa e sejam convidados a interagir. Adivinho que possam vir a ser polémicas todas essas diferenças de perspetivas, mas procuro que cada pessoa possa ter uma experiência pessoal e única.

Esta coleção já foi espetáculo, livro, agora exposição. O projeto encerra aqui?

Não de todo. Aliás, para assinalar os dez anos do início do projeto tenho pensada uma reativação da coleção através de uma performance duracional. Ainda não estou totalmente ciente do que poderá ser, mas aquilo que gostava mesmo era de poder contar todas as histórias destes encontros, poder partilhar tudo o que não coube nos espetáculos, na exposição ou até mesmo no livro [publicado numa edição do Teatro Nacional D. Maria II].

Talvez importe esclarecer que tanto a Coleção como a Exposição de Amantes são partes de um projeto artístico, e que as pessoas “colecionadas” estavam cientes disso mesmo e daquilo que é uma intimidade ficcionada.

É curioso porque, ao longo do tempo, o projeto, que começou por ser algo muito romantizado e parecia procurar responder às minhas aflições com o amor, tornou-se mesmo muito ativista, ou não fosse feito por uma mulher. De certo modo, acaba por haver uma provocação às convenções quando não é um homem, mas sim uma mulher, a “colecionar” amantes. E essa consciência partiu de fora, quando comecei a dar as primeiras entrevistas e a ver comentários na internet acusando-me de tudo, até de usar apoios públicos para “andar a fazer isto” [risos].

“A arte apareceu na minha vida porque se tornou, recorrentemente, naquilo que me salvava nos momentos mais difíceis e delicados.”

Será interessante recuar uns anos e perceber como é que alguém se torna uma colecionadora de pessoas porque, aos amantes, seguiram-se os colecionadores, os artistas e os espectadores

Começou no Brasil, país para onde fui em 2011 com uma bolsa de estudos. Sem o perceber de antemão, estava a imigrar porque a crise económica instalava-se em Portugal, e depois de uns meses a estagiar na Cia. dos Atores [companhia de teatro do Rio de Janeiro], acabei mesmo por ficar. A experiência de estar e viver fora da Europa a partir dos 23 anos fez-me tomar consciência do que é ser europeia, do que é ser uma mulher branca sendo, simultaneamente, uma artista portuguesa. Vivi lá sete anos, portanto, foi no Brasil, sozinha, que me tornei uma mulher adulta. E só ali poderia ter nascido este movimento artístico de querer guardar uma pessoa que, ao mesmo tempo, me guarda a mim.

A Coleção de Amantes começa, precisamente, no Rio de Janeiro…

Numa altura em que procurava perceber como é que nos tornamos íntimos do outro. E, ao mesmo tempo, quando começo a relacionar a intimidade com essa coisa de estarmos e de nos sentirmos em casa. Um dia, conheci alguém na rua e comecei a falar da vontade de fotografar em casas de desconhecidos. Acabei por pedir para ir a casa dessa pessoa e passei lá 16 horas. Tivemos uma conversa tão intensa e interessante que, quando sai, pensei: tenho de me encontrar com outra pessoa. Nunca mais parou, tanto que, quando estreei o espetáculo, tinha já “colecionado” 73 amantes, muitas histórias e largas centenas de fotografias.

Mas a vontade de ser colecionadora começa somente nesse dia, nesse encontro com essa pessoa?

É curioso, mas eu nunca tinha colecionada nada na vida. Ao continuar, fui percebendo que estava a tornar-me uma colecionadora, aplicando uma metodologia precisa não só aos encontros mas à construção do próprio arquivo, mais a mais, sendo um arquivo de encontros com pessoas, logo efémero. Foi isso que me levou, a seguir, a iniciar a Coleção de Colecionadores no intuito de “colecionar” pessoas como eu, ou naquilo em que me tinha tornado. Junto de outros colecionadores, parti em busca de respostas para questões como “o que é isso de ser colecionador” ou “porque queremos guardar coisas”…

E depois veio a Coleção de Artistas…

Quando cheguei ao Brasil era uma jovem atriz recém-formada, e não encontrei lugar, tendo trabalhado, sobretudo, como assistente de encenação. Portanto, foi com a Coleção de Amantes que me tornei autora, e com ela comecei a perceber o que é isso de ser criador. Inevitavelmente, depois dos colecionadores, a coleção seguinte foi a de artistas, tentando usar o meu corpo como um arquivo de coisas que outros artistas tinham criado. Ao mesmo tempo, era ali que questionava o que é isso de ser e de como nos tornamos artistas, estando consciente de que no meu percurso jamais foi evidente que pudesse tornar-me artista. Digo isto porque não venho de um lugar onde hajam artistas, porque nunca ninguém me incentivou a sê-lo, porque não tive uma educação que antecipadamente me preparasse para o ser, porque sou uma mulher que veio dos subúrbios de Lisboa, onde muitas vezes ver um espetáculo é um privilégio raro. Portanto, a arte apareceu na minha vida porque se tornou, recorrentemente, naquilo que me salvava nos momentos mais difíceis e delicados.

E a Coleção de Espectador_s

Na estreia da Coleção de Amantes, estando eu a falar de encontros efémeros, de momentos que não dão para guardar, ocorre-me olhar para a plateia e pensar que também aquele momento é único e tão efémero como os outros. Pensei imediatamente em comprar uma polaroid e registar cada plateia. Porém, há as questões dos direitos de imagem, pelo que abandono a ideia mas passo a desafiar, no final de cada récita das coleções, cada espectador a fotografar-se e a enviar-me a fotografia por email. Assim nasceu a coleção, contudo alarguei o âmbito e acabei por criar um espetáculo sobre os momentos que nós, enquanto espectadores, não esquecemos e de como eles nos transformam.

Vai continuar a ser uma atriz que é também uma colecionadora?

Muitas vezes pensei que ser atriz não era um lugar para mim. Hoje em dia, questiono-me mesmo se sou uma atriz, ou até mesmo uma artista, se não serei simplesmente alguém que faz teatro. Aquilo que sei é que vou continuar a “colecionar” pessoas.