O íntimo e o político no São Luiz

Temporada 2021/2022 aposta em grandes ciclos temáticos para questionar a sociedade

O íntimo e o político no São Luiz

Teatro, dança, música e um mundo inteiro de criação cabem no Teatro Municipal São Luiz nesta nova temporada, que começa a 15 de setembro com Pais e Filhos, o novo espetáculo de Pedro Penim. Ao longo dos meses, destaque para espetáculos e ciclos temáticos que questionam noções convencionais de família e educação ou abordam assuntos como a identidade de género, o corpo na arte e o feminismo. Mas, a grande aposta da temporada está reservada para o próximo ano quando, 48 anos passados sobre o 25 de Abril, a democracia somar mais um dia do que o fascismo.

“O teatro como lugar de questionamento e reflexão”, assume a diretora artística Aida Tavares, é a trave-mestra da Temporada 2021/2022 do Teatro São Luiz. E esse lugar começa já a perfilar-se com o primeiro espetáculo a subir ao palco da Sala Luís Miguel Cintra (a principal do teatro municipal). Pais e Filhos, projeto nascido do desafio feito há dois anos por Aida Tavares a Pedro Penim no sentido de adaptar um clássico, tornou-se algo mais do que trazer o influente romance de Ivan Turguéniev para o teatro.

Para este espetáculo, Penim agarrou num facto autobiográfico, como a vontade de abraçar a paternidade, e expôs o processo a que recorreu – a vulgarmente chamada “barriga de aluguer” – para abordar teses tão controversas como a da abolição da família. E ao reescrever a primeira adaptação que fez de Turguéniev (que “resultaria numa peça com umas cinco horas de duração” como o próprio confessa), foi “integrando esse assunto do foro intimo e pessoal e outros contributos”, lançando as bases para uma peça que, à boleia de um clássico, apela à reflexão sobre o modo como se entende a parentalidade e o conceito de família nos nossos dias.

Da noção de família para o meio educativo, que dela parte para a escola, e numa temporada em que a programação Mais Novos alarga o seu âmbito à criação para a adolescência, a diretora artística destaca o novo espetáculo dos criadores de Montanha Russa, Inês Barahona e Miguel Fragata, que em março do próximo ano estreiam Má Educação – Peça em 3 Rounds. “Da mesma forma que o Pedro Penim questiona a noção de família, este espetáculo vai fazê-lo com o tema da educação, propondo uma reflexão sobre o modo como se educa e para quem se educa, hoje”, sublinha Aida Tavares. A propósito do espetáculo, a 9 de março, o São Luiz recebe uma conferência com o desafiante título O meu Ministério da Educação.

A aposta em dar enfase a temas que partem da intimidade e da vida privada para entrar na esfera pública, e consequentemente política, está também vincada no ciclo, agendado para dezembro, dirigido por Daniel Gorjão e o Teatro do Vão, Um Coração Normal. Através de dois espetáculo (Vita & Virginia, de Gorjão, a partir da correspondência entre Virginia Woolf e Vita Sackville- West; e Gejaco, de João Villas-Boas, a propósito do processo interior de assunção da homossexualidade), e uma conversa informal que alia testemunhos na primeira pessoa e a voz de especialistas, abordam-se temas relacionados com identidade de género.

“Fraternité, Conte Fantastique”, de Caroline Guiela Nguyen ©Christophe Raynaud de Lage

Nunca indiferente ao questionamento e ao debate está Miguel Bonneville, artista que rasura o nome próprio como expressão de alguém que está em permanente transição, e que neste arranque de temporada veste o papel de curador do ciclo Recuperar o Corpo. Assumindo este protagonismo como uma continuação do seu trabalho enquanto criador, Bonneville reúne sete solos marcantes da performance em Portugal, para procurar refletir sobre a relação “entre arte e corpo” e a “necessidade de entender o ser humano e a relação com o seu corpo próprio.”

Recuperar o Corpo percorre cerca de 20 anos de performance, desde Notforget-Not Forgiven (1999) de Carlota Lagido a Julieta Bebe uma Cerveja no Inferno (2018) de Tiago Vieira, que abre o ciclo a 30 de outubro. Até 14 de novembro, voltam ao palco Maria Duarte com A Balada e Morte do Porta Estandarte Christoph Rilke, Odete com Anita escorre branco, Sónia Baptista com Haikus, Mónica Calle e Rita Só com Interior e Tiago Barbosa com A Grande Sombra Loira.

Para fechar o capítulo dos grandes ciclos (pelo menos para já), Aida Tavares destaca uma programação ainda em construção, comissariada por Tiago Bartolomeu Costa, que visa celebrar os 48 anos do 25 de Abril. “Uma celebração fundamental, mais a mais no preciso ano em que a democracia ultrapassará em longevidade a ditadura, a que demos o título de Mais Um Dia“. Para além de muito debate, reflexão e pensamento (sobretudo num teatro que coabitou, paredes-meias com a sede da polícia política do salazarismo), o ciclo inclui música – um especialíssimo concerto encenado de Luca Argel -, o regresso ao palco do espetáculo de Joaquim Horta Memórias de uma falsificadora, a partir do livro autobiográfico de Margarida Tengarrinha; e a estreia em Portugal de um dos espetáculos sensação do último Festival d’Avignon: Fraternité, Conte Fantastique, peça escrita e dirigida por Caroline Guiela Nguyen, que apenas uma semana antes levará o aclamado Saigão ao Teatro Nacional D. Maria II.

Regressos com estreias e muita música

A marcar a temporada, o São Luiz volta a ser palco dos novos trabalhos de alguns dos artistas “muito da casa”: Cristina Carvalhal apresenta, já este mês, Sou uma ópera, um tumulto, uma ameaça; Rita Calçada Bastos prossegue o seu tríptico (semi-auto) biográfico, iniciado em Eu Sou Nina, com Eu Sou Clarice, dedicado à vida e obra de Clarice Lispector; o coreógrafo Victor Hugo Pontes volta a trabalhar com Joana Craveiro em Meio no Meio; e Ricardo Neves-Neves dirige a Companhia Maior, numa criação ainda sem título definido que estreia no final de junho de 2022.

Também regressam ao teatro municipal Rogério de Carvalho e o Teatro Griot, com Uma Dança das Florestas, de Wole Soyinka; António Pires com Senhora Weigel – A Última Refeição, de António Cabrita; Leonor Keil com Histórias de Além Terra; ou Jorge Silva Melo e os Artistas Unidos numa nova incursão à obra fundamental de Noël Coward, com a peça Vida de Artistas.

Para além do teatro e da dança, o São Luiz é palco de inúmeros concertos. Nos três primeiros meses do ano, destacam-se as homenagens a Manuel Alegre, nos 85 anos do poeta (6 de outubro); ao maestro Christopher Bochmann, com a Orquestra Sinfónica Juvenil que o próprio dirige (31 de outubro); e a José Saramago, celebrando o centenário do nascimento do escritor (16 de novembro). O fado faz-se ouvir nas vozes de Gil do Carmo (4 de dezembro) e Marco Oliveira (5 de dezembro). A fechar o trimestre, em duas noites (20 e 21 de dezembro) que prometem ser inesquecíveis, os Dead Combo despedem-se definitivamente dos palcos, colocando ponto final a um percurso notável de 18 anos de carreira.

Toda a programação pode ser consultada no site oficial do São Luiz.