Capicua

"Num país mais justo e menos racista, teria sido uma mulher negra a primeira a conseguir uma carreira longeva no rap nacional"

Capicua

Capicua (nome artístico de Ana Matos Fernandes) é a maior referência feminina do hip hop nacional. O ano passado, a artista portuense lançou Madrepérola, um disco que, por força da pandemia, não pôde ser apresentado em palco como seria suposto. Em fevereiro, lançou o EP digital Encore, uma espécie de prolongamento do álbum de 2020. Estivemos à conversa com ela sobre temas como a maternidade, a vida na pandemia e sobre como pode um artista reinventar-se quando lhe tiram o palco.

A última vez que falámos foi quando lançaste Mão Verde, o teu disco para crianças. Entretanto foste mãe. De que forma é que a maternidade influenciou a tua forma de olhar o mundo e, consequentemente, a forma como fazes música?

É uma transformação muito profunda que acaba sempre por mudar a nossa forma de estar na vida e, por consequência, o nosso trabalho. No meu caso, isso notou-se sobretudo no Madrepérola, o disco que saiu o ano passado, que foi escrito e gravado maioritariamente durante a gravidez, e aí já se começa a perceber esse impacto, de certa forma mais com o que tem a ver com a gravidez e com o parto, e não tanto com a maternidade em si. Esse processo de me tornar mãe ainda está em curso, é uma coisa que vai acontecendo e em cada fase há novas descobertas. Acho que vou sentir mais isso num próximo disco, porque quem o vai escrever vou ser eu nesta fase, com as dores de crescimento já mais digeridas e pensadas. Nesse sentido, a minha vida mudou muito. O eixo no qual a minha vida gira, bem como o meu tempo e as minhas prioridades, mudaram. Emocionalmente também mudou muita coisa, mesmo em termos do que gostamos de fazer, com que amigos nos identificamos mais, que filmes, discos e livros queremos consumir com o pouco tempo que temos… Há muitas coisas que mudam que são muito subtis, mesmo no nosso ser individual, para além do que tem a ver com a maternidade em si, mas isso é uma descoberta que está em curso e que só terá eco num próximo disco, ou nos próximos trabalhos, não necessariamente discos. Também tenho escrito sobre isto nas crónicas que faço para a Visão. É um assunto sobre o qual gostava de escrever num futuro próximo, de forma mais alongada, porque me interessa enquanto tema, mais em forma de escrita do que propriamente de música, embora na música também tenha tido impacto. No caso destes últimos dois anos, a pandemia foi tão forte, o ano passado mudou tudo tão de repente, que ainda há muitas coisas para digerir.

Consideras Madrepérola um trabalho ‘mais solar’ do que os anteriores. Classifica-lo assim por ter sido gravado em plena fase de estado de graça?

Tem a ver com a proposta de disco que fiz a mim própria. Queria fazer um disco que tivesse uma abordagem mais solar, mais irónica, mais dançável, mesmo que os temas fossem sérios. Senti que já tinha explorado um lado mais sério e mais político-social e emocional da minha escrita e menos o lado mais airoso, mais luminoso, mais irónico, e gostava de equilibrar um bocado essa balança mesmo falando de temas sérios e de emoção, e fazer um disco mais aberto ao mundo, com cruzamentos com outras músicas, com outras vozes, e daí ter muitos convidados, com instrumentais mais dançáveis. Tentei fazer esse exercício criativo para também não repetir fórmulas e evoluir enquanto artista. É um disco muito inspirado no Brasil, um disco de língua franca com a Missiva, o Rael e produtores brasileiros. Fiquei fascinada pela forma brasileira de criar, mais intuitiva, mais espontânea, menos cerebral, menos filtrada, como eu tinha mais tendência para escrever. Por essa quantidade de fatores o disco já seria mais solar de qualquer forma, mas o facto de o ter escrito maioritariamente grávida (só uma música é que foi escrita depois) fez com que a felicidade daqueles meses de otimismo e esperança em relação ao futuro também ficasse muito marcada no disco, com uma certa falta de filtro, com as hormonas e as emoções à flor da pele.

Como foi dar a conhecer um álbum em plena pandemia?

Fiquei muito frustrada, na verdade. Foi difícil para todos os artistas, e para os músicos, que dependem das atuações ao vivo para viver, mas foi especialmente ingrato porque tinha acabado de lançar um disco novo depois de um ano em que tinha abrandado porque tinha tido um bebé e estive de licença de maternidade, por isso para mim foi um segundo ano de confinamento [risos]. Fiz um grande esforço pessoal para terminar o disco com um bebé muito pequeno, para voltar à minha própria individualidade, voltar ao trabalho, voltar à vida para além das paredes de casa e acabou por ser tudo ao contrário. Ao princípio fiquei um bocado frustrada, mas depois percebi que aquele disco falava precisamente sobre isso, de fazer das dificuldades as nossas pérolas. O disco chama-se Madrepérola por causa dessa ideia de que as ostras só fazem pérola quando têm um grão de areia a incomodar e vão criando uma espécie de baba que remexe no grão de areia e acabam por, inadvertidamente, criar uma pérola. Acho que essa metáfora é muito eficaz para descrever aquilo que é o meu processo criativo e da maioria dos artistas, e também a própria ideia de uma atividade que também precisa de muita superação e espírito de sacrifício. Depois percebi que o disco fala sobre isso e que me estava a dar os mantras para eu sobreviver a esta frustração e a esta fase difícil. É um disco muito aberto, muito positivo e que fala sobre essa capacidade de tornar o desconforto em beleza, em sublimação, em renascimento… Acabei por perceber que tinha feito o disco certo para o momento certo, mas claro que essa frustração não desapareceu totalmente, porque tinha muita vontade de tocar o disco ao vivo. Acredito mesmo que os discos só se consumam no palco e só se terminam quando chegam ao público, e a meia dúzia de concertos que demos em 2020 não chegou para matar essa fome. Foi isso que me motivou a gravar o tal EP que comemora o aniversário do Madrepérola e que se chama Encore.

Portanto, Encore, que inclui canções gravadas ao vivo em concertos no Porto e Aveiro, é um prolongamento de Madrepérola?

Vejo-o como um prolongamento da experiência de estar em palco. A pandemia fez com que valorizasse muito essa experiência, porque cada concerto foi uma oportunidade vivida com muita gratidão, com muita alegria. Nunca sorri tanto num palco como nesta meia dúzia de concertos que dei o ano passado. Estes dois concertos que estão gravados no EP foram realizados com seis meses de atraso, e um deles teve dois reagendamentos. As pessoas tinham o bilhete comprado há meses e esperaram, foram de máscara e sem poder dançar livremente, mas foram. Este EP é também para imortalizar as palmas que recebemos naqueles dias. O Encore acaba por não ser só o prolongamento do próprio Madrepérola, porque tem duas músicas do disco que foram regravadas ao vivo por terem crescido tanto em palco. Tem uma música nova, o Encore, cuja letra fala sobre as transformações emocionais destes últimos meses e que tem um poema no refrão que fala sobre a necessidade de, a partir dos escombros, construirmos os reencontros, portanto muito apropriada para falar destes tempos. Também se chama Encore porque as outras duas músicas de discos anteriores eram o encore dos concertos de apresentação. Por um lado, o EP celebra o palco no momento em que estamos privados dele, por outro, pretende agradecer às pessoas que fizeram questão de estar presentes naqueles concertos de 2020 que foram tão especiais, e ainda celebra o aniversário de um disco que foi muito desejado e que eu acho – mesmo que mais ninguém ache – que é o meu melhor disco, e que não teve a vida na estrada que merecia ter tido. Este EP veio resolver um bocadinho todas estas pendências.

“Este EP celebra o palco no momento em que estamos privados dele, e pretende agradecer às pessoas que fizeram questão de estar presentes nos concertos de 2020, que foram tão especiais”

 

Como viveste a primeira fase do confinamento? Foi uma altura proativa, de inspiração, ou foi precisamente o oposto?

Tinha acabado de lançar um disco, o confinamento começou praticamente um mês depois do Madrepérola sair. Estava muito envolvida nessa etapa de apresentar o novo disco quando ela foi completamente boicotada pela pandemia. Naqueles meses iniciais de confinamento, além do que toda a gente fez, que foi organizar coisas em casa e tentar manter a saúde mental à tona, o que fiz foi refletir acerca daquilo que eu queria para a minha carreira para não ser tão dependente dos concertos e da música em particular. Isso foi importante para tentar diversificar as minhas formas de sustento, mas sobretudo para perceber as possibilidades de desdobramento da minha escrita noutras coisas. Foi muito interessante para mim porque tenho vários projetos – dos quais ainda não posso falar – ligados à escrita, mas noutras áreas que não têm a ver com a música e que me estão a estimular muito. Estou também a fazer alguns cursos de escrita para diversos formatos e tenho aprendido muito. Os meses de confinamento deram-me para perceber que não preciso – e não devo – ficar limitada a apenas uma coisa, mesmo que ela me faça muito feliz. Nem quando era adolescente sonhei algum dia viver da música e acho que é um bocadinho imprudente, é pouco sensato, no mundo em que vivemos, depender de uma coisa só. Pôr o peso de pagar as contas em cima de algo que se ama tanto é como depender de alguém que amamos muito. Nunca me passou pela cabeça ser sustentada por um marido, da mesma forma que não quero ser sustentada única e exclusivamente pela minha música. Deu para fazer essa reflexão e pensar também que temos de, cada vez mais, valorizar o que fazemos. No caso da música, com todo este cenário do streaming mal pago, da banalização dos downloads gratuitos, da banalização dos concertos online durante a pandemia, há uma tendência para banalizarmos o que fazemos e as pessoas habituaram-se a ter música sem dar nada em troca. Isso é uma coisa perversa, porque quem acaba por ser prejudicado são os artistas e, por consequência, a própria música, no sentido em que, se as pessoas não puderem fazer a sua música e ser pagos por isso, acabam por ir fazer outras coisas. Há todo um pensamento que temos de fazer enquanto classe. Enquanto trabalhadores da Cultura também há toda uma reflexão que tem sido feita, de exigências e de luta que temos de continuar a fazer cada vez mais.

Essa fórmula que adotaste para ti, de te reinventares, de alargares os teus horizontes para além da música, pensas que outros artistas deveriam adotar também?

O que devia acontecer era as pessoas fazerem o que gostam e viverem condignamente com isso. O Carlos Paredes dizia que gostava demasiado da música para viver dela, o Sam the Kid fez um refrão célebre em que dizia o contrário, em que gostava demasiado da música para não viver dela. Cada artista tem uma posição muito individual, pessoal e intransmissível em relação à forma como quer viver com – e da – sua música. Acho que os artistas têm o direito – até porque a Cultura é um bem constitucional e essencial à nossa vida coletiva e individual – de poder fazer o seu trabalho com dignidade. Claro que as escolhas estratégicas de carreira de cada um dependem muito da sua forma de estar. No meu caso, como sempre gostei de fazer coisas diferentes e nunca ambicionei viver da música, isso faz sentido. Diversificar é algo que me entusiasma bastante, mas se calhar para outra pessoa pode ser uma pressão desnecessária. As pessoas deviam poder viver do seu ofício exclusivamente. O que acho que esta experiência trouxe, não só aos músicos ou a trabalhadores da Cultura, foi o repensar de uma série de coisas que têm a ver com o nosso estilo de vida e com a nossa vida coletiva e com a forma como organizamos as nossas sociedades. Desde o ponto de vista ecológico até ao ponto de vista laboral, repensaram-se imensas coisas que deviam ser trabalhadas para não repetirmos os mesmos erros. Há uma ideia de regresso à normalidade, mas eu acho que devíamos construir uma nova etapa em vez de voltarmos à normalidade, porque ela estava cheia de coisas insustentáveis que ficaram muito óbvias nesta experiência.

És a grande referência feminina no universo do hip hop nacional. Por que motivo é o hip hop um meio maioritariamente masculino?

Ultimamente têm aparecido mais mulheres a competir pela visibilidade mediática e pelos streamings taco a taco com muitos homens, portanto acho que isso é uma coisa que tem tendência a transformar-se e ainda bem. O hip hop sempre foi um boys club e durante muitos anos foi um meio um bocado hostil para as mulheres na perspetiva de que, para fazer rap, é preciso um conjunto de características, ferramentas e qualidades que não são estimuladas culturalmente na socialização das mulheres, como por exemplo, ser competitiva, ter espírito de liderança, dar opiniões de forma mais assertiva, muitas vezes de forma desbocada, um conjunto de coisas que é habitual ver nos rappers homens mas que nas mulheres não é muito cultivado. Depois também não é um meio muito atrativo para as mulheres no sentido em que é preciso romper várias barreiras simbólicas ou alguns entraves um bocado subtis que dificilmente se ultrapassam sem uma grande determinação. Comecei a fazer rap com uma amiga, a M7, e  também tive a sorte de encontrar produtores, nomeadamente o Mundo, dos Dealema, e o D-One, que trabalha comigo até hoje, que sempre me trataram de igual para igual. Também tive a sorte de colaborar com outras mulheres, como por exemplo a Eva Rap Diva. Fui encontrando pessoas que, de certa forma, me fadaram o caminho. Eu também tinha algumas características pessoais que ajudaram. Já era uma feminista, já tinha alguma capacidade de pensar nas questões de igualdade de género, do que é preciso em termos de espírito crítico para ir desmontando e desconstruindo essas barreiras simbólicas, e acabei por estudar Sociologia, o que também me ajudou. A cultura hip hop vem, originalmente, da comunidade afro-americana de Nova Iorque, e nasceu em Portugal também da comunidade afro-portuguesa. Houve muitas mulheres que começaram por ser as pioneiras do rap nacional, mas que foram desistindo. O facto de ser uma mulher branca, do Porto, de certa forma mais privilegiada, e que conseguiu ser a primeira a construir uma carreira longeva no rap também diz muito acerca da falta de oportunidades das mulheres negras de bairros mais periféricos da zona de Lisboa, que sempre estiveram em desvantagem competitiva e comparativa. Se calhar se vivêssemos num país um bocadinho mais justo e menos racista, teria sido uma mulher negra a primeira a conseguir uma carreira longeva no rap nacional.

Tens alguma ideia de quando poderás voltar à estrada?

Tinha concertos marcados para janeiro e março. Neste momento estão todos suspensos e creio que até acabar o confinamento que estamos a viver não haverá possibilidade disso. Creio que só a partir de maio/junho é que vamos começar a ver um reacender da vida cultural com todas as restrições que havia até aqui e que funcionaram bem. As pessoas não estavam minimamente em risco e fomos viabilizando algumas coisas. Outras não foi possível realizar, como os festivais, ou eventos que deixaram de ser financeiramente viáveis com metade da lotação. Houve muitas contingências e encontrou-se uma solução de compromisso, mas foi melhor do que nada, no sentido em que não só os trabalhadores da Cultura precisam de trabalhar, como as pessoas precisam muito de ir ver espetáculos a bem da sua saúde mental. Se não houver espetáculos e Cultura acessível a todos, as pessoas vão sempre ter mais tendência a fazer festas ilegais e aglomerações em casa.

Até lá, onde podemos saber novidades tuas?

Podem-me ir lendo na Visão, podem-me ir ouvindo nas plataformas digitais, e podem sempre comprar os discos online. Tenho sentido muito apoio por parte das pessoas ao longo dos últimos meses de pandemia. Fizeram questão de comprar CDs, T-shirts, de ir aos concertos, de encher as salas dentro da sua lotação autorizada para mostrar que estavam de facto a apoiar os artistas e, no meu caso, que tinham gostado muito do Madrepérola e queriam retribuir. Sinto-me muito abençoada por, no meio deste caos todo, ter conseguido, pelo menos, passar a mensagem de que o disco estava lá e ter conseguido dar concertos muito especiais que ficaram registados para sempre neste EP.