Luís Varatojo

"As pessoas não entendem que o direito a fazer política é a única arma que têm à mão”

Luís Varatojo

Luís Varatojo faz parte da história da música nacional. Conhecido por projetos como Peste & Sida, Linha da Frente, A Naifa ou Fandango, o músico e produtor inicia agora uma nova aventura com o projeto Luta Livre, onde reinventa a música de intervenção. A mensagem é clara, e pretende ser um abanão nestes tempos de adormecimento em que vivemos.

Luta Livre é um projeto que se define como música de intervenção com uma linguagem estética moderna. A cantiga continua a ser uma arma?

A cantiga pode sempre ser uma arma, e como dizia José Mário Branco “tudo depende da bala e da pontaria”. Usando esta terminologia mais bélica, parece-me que há muitos tipos de balas e muitos tipos de alvos. Tudo começa com a decisão do atirador, que escolhe a arma, a munição e o alvo. Depois, se quiser acertar, pode treinar a pontaria. Ou então atira para o ar. Quero eu dizer que a música sempre foi um meio de transmissão de mensagens por excelência, e onde as hipóteses são imensas. A intervenção pode acontecer de diversas formas, mesmo sem um discurso abertamente político. Por vezes, basta sabotar determinadas fórmulas ou falar de determinados assuntos para que se crie algum desconforto. O que interessa é pôr o ouvinte a pensar em coisas em que habitualmente não pensa. Ou a questionar coisas que habitualmente não questiona. É óbvio que a bala que faz mais estrago é aquela que vem carregada com política. E, hoje em dia, precisamos tanto de pôr as pessoas a participar na política…

A ideia nasceu do tempo em quarentena?

A ideia já estava a ser trabalhada antes da quarentena – aliás, a primeira música saiu no dia 1 de março. De há uns tempos para cá voltei a escrever com a perspetiva de fazer canções. Isto surgiu do meu hábito diário de consumo de notícias e informação. Enquanto tomo o pequeno almoço gosto de passar em revista a imprensa diária, nacional e internacional, para ficar a par do que se passa em Portugal e no mundo. Por vezes tiro algumas notas – uma frase, um pormenor da estória, os factos da notícia. A determinada altura comecei a desenvolver algumas dessas notas, e apercebi-me que podiam dar letras de canções. Não sendo um projeto planeado, nasceu até de forma bastante espontânea, tornando-se inevitável quando juntei os textos à música que andava a compor e as coisas, do ponto de vista mais musical, começaram a ganhar sentido.

Peste & Sida era rock puro e duro, A Naifa tinha uma sonoridade mais ligada ao fado, Luta Livre tem uma forte componente de jazz. A maturidade que a idade traz reflete-se na música que se faz?

Provavelmente sim. Mas a música que se faz tem sobretudo a ver com a música que se ouve. Confesso que comecei a ouvir jazz tardiamente, de há uns dez ou 12 anos para cá, e desde então tenho conhecido muitos músicos e comprado muitos discos, acho que posso dizer que já não sou um ignorante na matéria. Obviamente que o que estou a fazer não é jazz, não sou um músico de jazz, continuo a ser um músico de rock e as canções que faço têm o molde das canções de rock. Assim como as canções que fiz n’A Naifa, não eram fado.

Política, Ninguém quer saber e Iniquidade refletem uma preocupação genuína com questões políticas e da atualidade. Somos um povo desinformado?

Somos um povo e somos um mundo desinformado. De facto, com tanta informação disponível, como é que somos tão idiotas? Acho que tem a ver com a forma como fomos educados nas últimas décadas, talvez desde a Segunda Guerra Mundial. Embora no início deste período tenha havido um certo ambiente de renascença no ar, as sociedades encaminharam-se para um modelo superficial, baseado no consumo e no entretenimento básico, que levou à completa alienação de uma grande parte da população. Neste momento muita gente acha que a política é a raíz de todos males, não percebendo, nem querendo perceber, que o direito a fazer política é a única (e mais potente) arma que têm à mão para fazer valer os seus direitos. O velho conceito “dividir para reinar” está cada vez mais presente e, inacreditavelmente, continua a dar frutos.

De onde vem esta apatia tão portuguesa?

Os portugueses não são um povo assim tão apático. Na nossa história houve várias revoluções, algumas até bastante violentas, que fizeram cair governos e sistemas políticos. Acho que neste momento sofremos de um mal global. Nunca houve, na história da humanidade, uma globalização/normalização/uniformização tão clara do pensamento e dos comportamentos, e Portugal não está fora do sistema nem imune a esta tendência. Ainda assim, temos alguma massa crítica, resultado, sobretudo, da melhoria do sistema de educação pós-25 de Abril. Nunca é demais lembrar que antes da revolução mais de 50% da população portuguesa era analfabeta.

“O que interessa é pôr o ouvinte a pensar em coisas que habitualmente não pensa, ou a questionar coisas que habitualmente não questiona”

 

A leitura dos jornais e as redes sociais são um campo fértil de inspiração para as suas letras. Sente-se desiludido com o estado atual da sociedade?

Não me sinto desiludido, nada está fechado ou acabado, as coisas estão em permanente mudança e o futuro somos nós que o escrevemos. Sinto-me motivado. Se me sentisse desiludido não estaria a escrever estas canções.

Edgar Caramelo, Ricardo Toscano e o Coro Gospel Collective participam nestes primeiros temas. Foi um desafio gravarem à distância?

O Ricardo e o Edgar vieram ao meu estúdio antes da quarentena. O coro Gospel Collective foi gravado noutro estúdio, mais espaçoso, mas também antes do confinamento. Com a Kika Santos foi diferente, enviei-lhe a letra e ela gravou. Depois misturei a voz dela com o instrumental. Neste caso foi simples porque a Kika também tem um pequeno estúdio onde pode fazer as gravações. A digitalização da música, a partir dos anos 90, trouxe-nos coisas más e coisas boas. A pirataria e consequente usurpação de direitos foram as coisas más. As coisas boas foram, felizmente, mais que as más, e dessas destaco a democratização do acesso a meios de produção e gravação – hoje em dia qualquer aspirante a músico consegue, com um pequeno investimento, ter um sistema competente de gravação. Neste momento, com a tecnologia acessível disponível só não faz quem não quer.

Para já, foram lançadas três canções de Luta Livre. O plano é lançar um álbum?

O plano continua a ser o inicial, que consiste em ir mostrando as canções que vou conseguindo acabar. Confesso que, nesta altura, e olhando para o trabalho que tenho em andamento, já me passa pela cabeça poder vir a juntar todas as canções num disco, vamos ver…

Estes são tempos muito difíceis para quem vive da Cultura, o que obrigou muitos artistas a reinventarem-se. Como vive um músico nos dias que correm?

Nestes dias a principal preocupação é saber quando poderemos voltar aos palcos. Há muita ansiedade, sobretudo porque não existe um horizonte temporal, neste momento ninguém sabe quanto tempo isto vai durar (os espetáculos com as regras de distanciamento social não são solução). Tenho contornado essa ansiedade produzindo música. Para mim a quarentena, em certa medida, até está a ser benéfica, porque estou a conseguir produzir muito mais do que em situação de normalidade. Mas não podemos ficar assim muito mais tempo. Espero que se encontre a vacina ou a cura rapidamente.

O que tem ouvido nesta quarentena?

Mais tempo em casa também resultou em mais tempo para ouvir música. Tenho dado a volta aos meus discos antigos e voltei a ouvir coisas que já não ouvia há algum tempo. Mas vai dependendo da disposição e da meteorologia. Quando está calor gosto de ouvir reggae, rumbas… Quando chove é mais Massive Attack, Tricky… Por vezes de manhã, para começar com energia, ponho a tocar os clássicos dos oitentas: Dexys, Talking Heads, Devo… À noite é mais Jazz.