Sérgio Tréfaut

'Raiva' é o mais recente filme do cineasta

Sérgio Tréfaut

Chega aos cinemas a 31 de outubro, Raiva, adaptação de Sérgio Tréfaut da obra Seara de Vento, de Manuel da Fonseca. A história, passada nos anos de 1950 no Alentejo, acompanha a luta de Palma, um trabalhador rural e homem de família, a quem é negado trabalho pelo proprietário das terras. Filmado a preto e branco é segundo o realizador um filme “fora de moda”. Fomos saber porquê.

Como surgiu a ideia de adaptar o romance Seara de Vento, de Manuel da Fonseca?

Quando preparei o documentário Alentejo, Alentejo, tentei perceber o que podia ajudar a compreender um Alentejo profundo, ancestral, que não só motivava o canto, mas também a maneira de ser das pessoas. Uma das coisas que sempre me impressionou no Alentejo é a maneira cuidada como as pessoas se expressam, o seu silêncio. Na altura do documentário todos me falaram neste romance, Seara de Vento. Quando o li reconheci as questões sociais sobre o Alentejo que estava habituado a ouvir, mas expressas de uma maneira limpa e depurada, mas muito poderosa. Fiquei imediatamente apaixonado por uma das personagens, Amanda Carrusca, e pensei logo na Isabel Ruth para o papel. Foi este o ponto de partida.

Tem afirmado que este é um filme fora de moda. Porquê?

Primeiro o preto e branco não vende. Depois a forma seca da narração é o contrário do mainstream. As minhas inspirações fundamentais estão mais ligadas ao cinema mudo. Embora o filme não seja hermético e difícil, não está construído para a manipulação emotiva através da música, que aqui não tem o papel de conduzir o espetador. Também não há um processo de identificação com as personagens, o espetador está distanciado, sendo levado a interrogar-se sobre o porquê das coisas. Trabalho de uma forma depurada, prefiro contar a história dentro do contexto da época do que transpor a existência do Palma (personagem principal) para a realidade contemporânea, transformando-o, por exemplo, num traficante de droga dos dias de hoje.

Se não existisse referência temporal no filme seríamos levados a pensar que a ação se situa numa data mais remota, numa realidade quase feudal…

A matriz é essa! Essa realidade social não evoluiu com o passar dos séculos. O proprietário da terra nos anos 50 era quem mandava no poder político local, quem mandava na igreja, quem era dono dos homens. Deixar de dar emprego a alguém, num lugar onde se é o único empregador é condenar uma pessoa à morte.

O vento, personagem determinante no romance, quase nunca se ouve no filme. Porquê?

Pensei muito nisso, mas um filme que é inteiramente vento é algo horrível. O Cavalo de Turim, do Bela Tarr, é lindíssimo, mas o barulho do vento é interminável e eu não gosto. Trabalhei com um misturador muito sofisticado que faz os filmes do Kusturica e do Farhadi. Por exemplo, quando a Amanda sobe a encosta existe uma mistura de pelo menos 12 ventos diferentes, o que permitiu uma composição subtil e não exagerada. Pensei muitas vezes no vento e há momentos exteriores em está presente, mas são três ou quatro lugares pontuais, se assim não fosse, acabava por afogar as outras coisas.

Sérgio Tréfaut ©H. Mouco/CML-ACL

A personagem da Catarina Wallenstein, filha do proprietário, revela uma grande ambiguidade. Porquê?

Foi a minha maneira de respeitar a forma como o Manuel da Fonseca escreveu o romance. Existem descrições longas que retratam a atração erótica que a filha do proprietário rural sente pelo Palma. É algo explícito no livro e que tem uma enorme força. Houve aliás duas tentativas de adaptação do livro, em Espanha e nos Estados Unidos, das quais o Manuel da Fonseca se afastou, porque transformaram a história num romance entre a filha do patrão e o empregado. Eu quis manter aquilo que ele transmitia no livro, mas de uma forma mais subtil, mantendo no entanto alguma tensão.

Num elenco de atores veteranos, o protagonista Hugo Bentes não é profissional. Como foi escolhido?

Sou muito intuitivo, tenho uma paixão por caras e presenças. No início pensei: vou contratar o Javier Bardem (risos), mas depois havia uma série de constrangimentos, nomeadamente ao nível da língua e de dinheiro, e essa ideia foi posta de parte. Embora existam atores portugueses extraordinários, não encontraria facilmente alguém que expressasse a terra, o orgulho e a ancestralidade do Alentejo no olhar e na maneira de estar, como o Hugo. Já tinha trabalhado com ele no Alentejo Alentejo e até o escolhi para a imagem do cartaz.

O Alentejo tem sido o seu território de eleição. Porquê este fascínio?

É um Alentejo de que eu gosto e que neste filme tento respeitar dentro da ótica do Manuel da Fonseca. Este Alentejo é visto por um italiano como o sul de Itália, por um sírio como a Síria. Foi algo com que me deparei em vários festivais. Há um denominador mediterrâneo comum e as histórias são arquétipos, são as mesmas no México, no nordeste do Brasil, com algumas nuances apenas.

A circularidade da acção é uma metáfora da ideia “de que nada muda” ou é apenas uma maneira de contar a história?

É uma maneira de contar a história, mas também de criar uma ligação com o espetador pedindo-lhe que se posicione de determinada maneira. Tem como referência a ideia de que embora a narrativa possa ser contada de várias maneiras, a história é sempre a mesma. Talvez não seja impossível mudar, mas mudar é muito difícil. O filme retrata uma época em que ainda não há luta de classes, onde é impossível haver uma resposta à opressão e ao abuso e a única coisa que se gera é uma raiva enorme. Nisto encontro algum paralelismo com a vida contemporânea, onde a maior parte das pessoas que trabalha deixou de ter a possibilidade de se defender, sujeita a uma relação selvagem de abuso, onde cada um se tenta safar.

O trabalho que tem desenvolvido é essencialmente na área do documentário. Considera que há mais liberdade artística na ficção?

Eu sofro muito com equipas grandes, durante uma rodagem ter 50 pessoas às costas é um peso. A liberdade num documentário é infinitamente maior, há um respirar. A responsabilidade na ficção é dolorosa para mim. Acho os documentários tão ficcionais como a ficção, a grande diferença está na produção e não no princípio.