reportagem
Pelas Quintas de Benfica
Itinerários de Lisboa
Pela beleza da sua paisagem, a zona de Benfica foi em tempos procurada pela aristocracia como estância de veraneio. Ao longo dos séculos XIX e XX, viria a sofrer grandes transformações em virtude da expansão urbanística da cidade. Contudo, a sul da linha férrea, Benfica conserva um característico conjunto de edifícios classificados que recordam a sua antiga feição. Integrado num ambiente único pela proximidade de Monsanto, de quintas e palácios, este percurso relembra São Domingos de Benfica que Frei Luís de Sousa descreveu: “um pequeno vale, que sendo naturalmente aprasivel, por frescura de fontes, e arvoredo, mereceo, ao que se póde crer, o nome que tem de Bemfica”.
A antiga e amável povoação de Bemfica, ainda que tão decaída hoje da alta importância que teve outrora no conceito, caprichoso e inconstante, da alta sociedade da capital, é, ainda assim, no seu tanto, o recantinho suburbano de Lisboa que mais aproximada idea nos sugere do que é para Roma o prestígio de Tivoli e de Frascati. Em nenhum outro lugar de Portugal, se exceptuarmos Sintra, se encontrarão reunidas em tão pequeno circuito, tão lindas, tão históricas, tão anedóticas, tão saudosas quintas como as que encerra Bemfica. Ramalho Ortigão
Iniciamos o nosso percurso junto à entrada do Jardim Zoológico, na Praça Humberto Delgado. O Jardim Zoológico, como hoje o conhecemos, foi inaugurado a 28 de maio de 1905, na antiga Quinta das Laranjeiras, pertencente ao Conde de Farrobo (Joaquim Pedro Quintela). Aristocrata português, filantropo e mecenas das artes, esbanjou toda a fortuna tendo morrido na miséria, em 1869. Antes da Quinta das Laranjeiras, o Jardim Zoológico funcionou no Parque da Palhavã (onde se situa a Fundação Calouste Gulbenkian). Com o arrendamento dos terrenos a terminar em 1905, e contando com a generosidade do proprietário da Quinta das Laranjeiras da altura, o Conde de Burnay, o Jardim Zoológico mudou-se então para o novo local, onde se mantém até hoje.
Deixamos a entrada principal do zoo e seguimos pela Estrada de Benfica até à antiga entrada principal, outrora a entrada para o Teatro Thalia. O fascínio do Conde de Farrobo pelas artes cénicas levou-o a mandar construir, em 1820, um teatro junto ao Palácio das Laranjeiras. Na sua inauguração, a 26 de fevereiro de 1843, foi oferecida uma grande festa à Rainha D. Maria II. Em 1862, um incêndio destruiu o teatro. O conde ainda tentou reconstrui-lo, mas por essa altura estava praticamente na miséria, tendo o teatro sido deixado ao abandono. A Quinta das Laranjeiras acabou vendida em hasta pública em 1874 (já depois da morte do conde), tendo passado por vários proprietários. Em 1940, o palácio foi comprado pelo Ministério das Colónias, e acabou por albergar vários ministérios. Em 2010, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior lançou o projeto de requalificação do teatro, que ficou a cargo de Gonçalo Byrne, Patrícia Barbas e Diogo Lopes. Atualmente, o Teatro Thalia é cenário de vários eventos culturais e científicos, e tem recebido regularmente concertos da Orquestra Metropolitana de Lisboa.
Continuando pela Estrada de Benfica, chegamos ao Chafariz das Águas Boas (ou de Santo António da Convalescença). O chafariz foi mandado erguer por D. Maria I por forma a responder aos pedidos dos moradores das Estradas da Convalescença (atual Estrada de Benfica) e das Laranjeiras. Era abastecido com água do Aqueduto, tendo ficado concluído no início do séc. XIX, em 1817. Na sua decoração ostenta as armas reais de D. João VI.
Mesmo em frente temos o Convento de Santo António da Convalescença, fundado em 1640. O convento foi construído no local chamado da Cruz da Pedra, tendo servido durante muitos anos de hospício a religiosos enfermos que, depois de tratados na enfermaria do Convento de Santo António dos Capuchos, ali iam para convalescer, sendo assistidos por outros religiosos. O convento foi extinto em 1834. A fachada, totalmente forrada a azulejos de várias épocas, em perfeito estado de conservação, é rara em Lisboa. Ali estiveram instaladas duas escolas: a Escola Técnica Elementar de Pedro de Santarém e a Escola Preparatória Professor Delfim Santos, bem como a Universidade Internacional.
Seguimos então para uma zona desconhecida de grande parte dos lisboetas, um pequeno e sossegado bairro situado na Travessa das Águas Boas, o Bairro Novo ou Bairro das Águas Boas. Construído na altura do Estado Novo (anos 60 e início dos anos 70), é quase uma aldeia dentro da cidade, caracterizado por casas com portas altas e estreitas, numa zona muito calma.
Invertemos a marcha e seguimos pela Rua de São Domingos de Benfica, onde, ao olharmos para a fachada de alguns edifícios, nos deparamos com os “entalados”, elementos decorativos de baixo-relevo, colocados por cima da entrada dos prédios. Nos anos 40 e 50, a construção não tinha grande sentido estético. Resolveu-se a questão incorporando estas esculturas – a maior parte delas mulheres deitadas. Em 1969, o arquiteto Francisco Keil do Amaral brincou com a situação, considerando bizarra a “proliferação epidémica dum estranho tipo de esculturas” que se propunha combater, criando uma “Associação Protetora de Lisboa e das Mulheres Entaladas entre as Portas e as Sacadas”.
Seguimos o corredor verde usando a passagem aérea. Aqui, paramos para observar o outro lado da linha férrea, uma zona predominantemente verde, com a mata de Monsanto e algumas quintas. Chegamos então à Rua António Macedo, parando na Quinta do Lameiro, cuja casa foi mandada construir entre os anos 1670 e 1680 pela família Sanches Baena. Em 1838, Abraham Weelhouse, casado com Elisabeth Oom, comprou-a em leilão. Foi aí que filho do casal se dedicou a experiências com sementes importadas, tendo deixado inúmeros esritos sobre o tema. Atualmente, pertence à família Oom.
Continuamos o nosso percurso até chegarmos ao Bairro do Calhau, uma verdadeira aldeia dentro da cidade. Construído em meados do século XX, é composto por casas térreas e um ambiente de grande familiaridade. Aqui todos se conhecem e fazem a típica vida de bairro. No Largo do Convívio, onde funciona a Associação de Moradores Flor da Serra, paramos para comer um pastel de nata e beber um café.
O itinerário prossegue até ao Largo de São Domingos de Benfica, onde nos deparamos com o Chafariz de São Domingos de Benfica, incorporado no conjunto do Palácio e Quinta de Devisme. Foi construído com permissão real por iniciativa de Gérard Devisme, burguês pombalino comerciante de pau-brasil. Em 1784, a edificação do chafariz estava terminada, mas só em 1787 um alvará lhe concedeu passagem de água do Aqueduto das Águas Livres, com uma condição: em caso de falta de água, este seria preterido em relação aos chafarizes de maior necessidade pública.
Focamo-nos agora no Palácio e Quinta de Devisme (ou da Infanta). Trata-se de uma quinta do século XVIII, pertencente ao mercador francês Gérard Devisme, um dos burgueses mais influentes do tempo do Marquês de Pombal. A quinta viria a ser adquirida pela Infanta D. Isabel Maria, que ali se instalou com uma pequena corte. Oito anos depois da sua morte, o palácio passou a alojar o Colégio de São José. Em 1910, o palácio e a quinta passaram para as mãos do Estado, tendo-se aí instalado um reformatório. Atualmente, pertence a uma congregação religiosa que dá apoio social à população. O edifício sofreu muitas transformações mas mantém a traça original.
Mesmo ao lado, temos o Convento de São Domingos de Benfica, um convento dominicano de construção medieval, reconstruído no séc. XVII. Em 1911, instalou-se aí o Instituto Militar dos Pupilos do Exército.
Um dos pontos interessantes a visitar é a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, que funcionou como paroquial de São Domingos de Benfica até aos anos 70 do século XX, passando então para as mãos da Força Aérea Portuguesa. Classificada como Imóvel de Interesse Público, é um bom exemplar de arquitetura religiosa maneirista. No interior temos os painéis de azulejos figurativos de António de Oliveira Bernardes, o retábulo-mor e os altares de talha maneirista de Jerónimo Correia, esculturas de Manuel Pereira, telas pintadas por André Gonçalves e Vicenzo Carducci, a inscrição tumular que indica a sepultura de Frei Luís de Sousa, bem como o túmulo de D. João das Regras (obra de referência na tumulária medieval, classificada como Monumento Nacional).
Saímos da igreja, invertemos a marcha e dirigimo-nos para o último ponto do nosso itinerário, o Palácio Marquês de Fronteira. Construído entre 1671 e 1672 como pavilhão de caça para João Mascarenhas (o primeiro Marquês de Fronteira), o palácio encontra-se num local muito tranquilo, mesmo ao lado do Parque Florestal de Monsanto. Inicialmente pensado apenas para férias, o palácio sofreu alterações depois do terramoto de 1755, para poder albergar a família permanentemente. Embora não seja muito comum, e apesar de ser considerado um monumento nacional, o palácio ainda é utilizado como residência da família Mascarenhas. Há uma parte aberta ao público, que inclui algumas salas, a biblioteca e o jardim, sendo usado também para fins culturais, como concertos, sessões de poesia ou workshops literários.
[Fotografias de Francisco Levita]