Na intimidade da História

'Filhos do Retorno' no Teatro Nacional D. Maria II

Na intimidade da História

O teatro de Joana Craveiro continua a iluminar a nossa história recente, tantas vezes tão ocultada e desconhecida. Em Filhos do Retorno, cinco atores debatem-se em cena com a sua própria memória e a das suas famílias. Para revelar um país.

Depois de um longo processo de audições, workshops e entrevistas, Joana Craveiro e a equipa do Teatro do Vestido selecionaram cinco atores (Cláudia Andrade, Daniel Moutinho, Lavínia Moreira, Marina Albuquerque e Rafael Rodrigues) que, não tendo vivido a experiência efetiva do Portugal colonial, cresceram com a memória de um tempo em que este “não era um país pequeno”, e se estendia da “metrópole” a África e à India. As marcas dessas raízes vão sendo ilustradas em fotografias de família, em objetos e artefactos, naquilo que se contou sobre o passado, ou nos sabores do óleo de palma africano ou da bebinca goesa, que os atores utilizam como celebração de uma memória indireta, herdada, repleta de afetos e, por vezes, de uma doce nostalgia.

Um espetáculo que questiona a relação de gerações que não viveram o passado colonial português com a memória familiar.

 

São estas memórias familiares idílicas, produzidas nessas terras distantes outrora portuguesas que, na peça, vão embater contra a realidade da História. Inevitavelmente, vão desfazer-se no mito do “colonialismo brando” que o fascismo sustentou, a reboque de uma historiografia oficial que, só após o 25 de Abril, e muito paulatinamente, vai sendo desmontada e, muitas vezes a medo, revelada (nesse sentido, a par de alguma literatura, é incontornável o papel desempenhado, no teatro, por Joana Craveiro e pelo seu Teatro do Vestido).

Em Filhos do Retorno – um “espelho invertido” do espetáculo Retornos, exílios e alguns que ficaram, acerca dos traumas de quem regressou, ou chegou, à dita “metrópole”, em sequência do processo de descolonização –, o conflito surge, como refere Joana Craveiro, “quando estes atores se confrontam com cadáveres no armário da história das suas famílias”. Como se um fantasma assombrasse as suas vidas para comprometer as boas memórias.

Assim, e se o espetáculo proporciona uma comemoração afetiva feita com tanto do que tão intimo aqueles atores transportam dentro de si, o que se torna particularmente avassalador é vermos como o passado lhes vai pesando, independentemente de qualquer julgamento moral sobre o comportamento dos indivíduos num determinado período histórico. Afinal, com ou sem memórias dum tempo obscuro, com ou sem raízes coloniais, uma questão vai trespassar-nos a todos: de que modo aquilo que somos é condicionado pelo legado familiar inscrito pelas gerações passadas.

Apresentado em 2017, no âmbito do FITEI – Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica, Filhos do Retorno estreia agora, em Lisboa, a 21 de junho, na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II.