Um conto de desencantar

'Cinderela' em estreia nacional no Teatro São Luiz

Um conto de desencantar

Em Cinderela, Lígia Soares usa os contos de encantar da nossa infância como metáfora desses difíceis amores do século XXI, e coloca Crista Alfaiate e Cláudio da Silva a confrontarem-se com as tensões e distensões de uma relação amorosa entre um casal oriundo de estratos sociais diferentes.

Partem de lados opostos do palco. Tomam os seus lugares numa espécie de namoradeira suspensa, como um balancé circular. Assumem “uma pose extremamente romântica que se estende a toda a duração do espetáculo”. Ele é o Princípe; ela, Cinderela. Amam-se, odeiam-se, louvam-se, insultam-se, concordam, discordam… Mostram o quanto é difícil amar no quotidiano. Mas, no final, confessam que só pretendem ser felizes. A dois.

Do imaginário de felicidade do amor romântico presente nos contos infantis, Lígia Soares oferece em Cinderela um olhar sobre os dias de hoje, onde as preocupações sociais que estão presentes no quotidiano irrompem na relação entre um casal. “Com este texto procurei perceber o deslaçar dos vínculos e o estado de isolamento de cada indivíduo na sociedade e na família, que resulta muitas vezes na incapacidade de cada um de nós se colocar no lugar do outro”, explica a autora e encenadora.

Crista Alfaiate e Cláudio da Silva vivem um muito difícil amor

 

Ao mesmo tempo, Lígia Soares centra a relação do Príncipe com a sua Cinderela num quadro de conflito de classes, mesmo dentro do casamento. “Atualmente, não há, por norma, tanta oposição como havia no passado contra a união de um casal proveniente de estratos sociais diferentes. Porém, há uma consciência implícita, mesmo entre os cônjuges, da impossibilidade de resolução da assimetria resultante da origem social.”

Perante um espetáculo onde a palavra é torrencial, contrastando com a imobilidade dos atores, a autora deixa antever algum pessimismo, apesar de, no final, derrotada a “relação idílica”, acabar por “vencer o amor maduro”. E assim se vive com “a realidade, como contraponto ao conto de fadas.”