A Trilogia Antropofágica

Tamara Cubas e o Perro Rabioso em Lisboa

A Trilogia Antropofágica

A coreógrafa uruguaia Tamara Cubas mergulha na tradição antropofágica, que exerceu particular influência na criação artística sul-americana durante alguns períodos do século XX, e, diretamente influenciada por três peças recentes da dança contemporânea brasileira, criou PermanecerResistir e Ocupar. A Trilogia Antropofágica marca o arranque da nova temporada do Teatro São Luiz, sendo as três criações (a última em estreia mundial) exibidas entre 15 e 24 de setembro.

Quando os modernistas brasileiros subscreveram, em 1928, o Manifesto Antropofágico proposto por Oswald de Andrade, aspiravam “deglutir” o legado cultural europeu e “digeri-lo” em nome da criação de uma arte efetivamente brasileira. No fundo, reclamavam uma identidade nacional que suscitasse uma rutura efetiva com a ideologia colonial (“contra as histórias do homem que começam no Cabo Finisterra”), apropriando-se de uma forma quase rudimentar do mito de que os indígenas Tupi praticavam um ritual de canibalização do inimigo, para desse modo se unirem ao outro, absorvendo-lhe as qualidade e as virtudes. A antropofagia não só marcou os autores do modernismo brasileiro como encontrou ecos noutros pontos da América do Sul.

Ao longo do século XX, e pontualmente, o conceito de “antropofagia” foi sendo recuperado – há inúmeras presenças nas artes plásticas, na literatura, no teatro, no Cinema Novo brasileiro e foi mesmo o tema da Bienal de São Paulo de 1998. O conceito não morreu neste século, e três das mais aclamadas e internacionalizadas peças da dança contemporânea brasileira evocam-no. São elas Pororoca (2009), de Lia Rodrigues; Vestígios (2010), de Marta Soares; e, sobretudo, Matadouro (2010), de Marcelo Evelin.

À luz do conceito, e partindo de cada uma das peças para também as “canibalizar”, a uruguaia Tamara Cubas e o coletivo Perro Rabioso criaram uma trilogia que recorre ao dispositivo de um ritual antropofágico. Como sublinha Lucia Nasser, não estará aqui em causa “devorar o inimigo” como pensavam os Tupi ou o “colonizador” (cultural) europeu como pretendiam os modernistas brasileiros. Cubas procura, isso sim, “descolonizar as relações de poder que estabelecemos com o outro”. Para tal, as peças compõem uma procura de “transformação orgânica” que se socorre da antropofagia para sublinhar a necessidade de uma cultura centrada na “assimilação e na comunicação presencial, corpórea, erótica.”

De certo modo, através de Permanecer (inspirada em Vestígios, de Marta Soares), Resistir (inspirada em Matadouro, de Marcelo Evelin) e na ainda inédita Ocupar (inspirada em Pororoca, de Lia Rodrigues), a sempre surpreendente Tamara Cubas desenvolve “um ato político sobre a nossa relação com o outro.”

‘Resistir’

 

Sobre Tamara Cubas

Uruguaia, nascida em 1972, iniciou a sua carreira artística nas artes plásticas, tendo posteriormente desenvolvido um consistente trabalho na dança, primeiro como bailarina, tendo sido dirigida por Marcelo Evelin ou Luciana Achugar, depois como coreógrafa.

Arrojada e radical, nas suas criações ecoam memórias, muitas vezes traumáticas, a que não é estranha a experiência de prisão, desaparecimento e exílio de alguns membros da sua família paterna durante a ditadura militar uruguaia. O seu trabalho é marcado por uma continuidade em que são, não raras vezes, reunidos pedaços de outras criações, num processo que a própria denomina de metonimização.

Em Portugal, Tamara Cubas apresentou Atos de Amor Perdidos (em 2013, no Negócio ZDB) e Putto Gallo Conquistador (em 2014, no âmbito do programa Próximo Futuro da Fundação Calouste Gulbenkian).