Cláudia Varejão

Ama-San

Cláudia Varejão

Ama-San é o mais recente trabalho de Cláudia Varejão. A realizadora acompanhou a vida de 3 mulheres japonesas - Matsumi, Mayumi e Masumi – que perpetuam uma atividade milenar, mergulhando sem auxílio de qualquer tipo de equipamento para apanhar marisco. As Ama-San são caçadoras no mar e mergulham diariamente sem saber o que vão encontrar. Estreia, a 26 de janeiro, no Cinema Ideal.

Como descobriu esta comunidade de mulheres e o que a levou a fazer um filme sobre este tema?

Em 2012, uma amiga minha, a Sónia Batista escreveu um livro de poesia e num dos poemas havia uma referência a estas mulheres, de uma forma poética e muito evasiva. No final do livro havia uma pequena nota que explicava quem elas eram. Lembro-me perfeitamente de estar a ler o livro, à noite, e pensar: Mas isto existe? Não, isto é uma coisa milenar que já desapareceu. Fui imediatamente procurar na internet. Descobri umas fotos dos anos 50, e nada mais. Pensei: Não há um filme? Se não há, vou eu fazer. Concorri, passados dois meses, a uma bolsa da Fundação Oriente. Em 2013 fui pela primeira vez ao Japão. Visitei uma série de vilas perto de Osaka e Tóquio. A última que visitei foi Wagu, uma vila piscatória, muito pequenina. Houve logo uma grande empatia entre mim e as mulheres. Regressei a Portugal, concorri ao ICA e voltei ao Japão, em 2014, para filmar.

Foi fácil obter autorização para filmar a vida destas mulheres?

Em todas as outras vilas era tudo muito tribal e ancestral, as mulheres eram muito fechadas. Nesta vila da Península de Ise, houve de facto uma grande empatia, principalmente com a Masumi. Ela ajudou muito a minha aproximação às Ama.

Como ultrapassou a barreira da língua?

Não falo japonês, mas isso funcionou a meu favor, e a favor da intimidade. A minha assistente é que fazia a ponte com as Ama, através da língua. Como as Ama não estavam habituadas a falar diretamente comigo, durante as cenas em que estava a filmar elas ignoravam-me, porque era uma presença com quem elas não estavam habituadas a comunicar diretamente. Havia de facto uma relação de proximidade, abraçávamo-nos, mas falar nunca. O que acaba por funcionar a favor do filme.

De facto as personagens raramente olham para a câmara, embora o filme seja um documentário há momentos em que parece tratar-se de uma ficção. Qual é para si a fronteira entre documentário e ficção?

O documentário é sempre uma ficção de alguém. A mim interessa-me esbater essas fronteiras. Ainda estou aprender a fazê-lo. Neste filme isso já acontece, mas gostava de ir ainda mais longe. Quero contar uma história, não estou preocupada se manipulo ou não a história, é o meu ponto de vista. Queria muito contar a história destas mulheres, dirigi-as algumas vezes, mas na maior parte do tempo é espontâneo. Houve algumas cenas que pedi para acontecerem, como a cena do fogo-de-artifício, embora seja algo que eles costumam fazer.

O trabalho das Ama-San é algo extraordinário, pela sua dureza e dificuldade. Mas estas mulheres são no fundo iguais a tantas outras que lutam todos os dias pela família. Esta é também uma história universal?

O extraordinário nas Ama-San é que elas conseguiram subverter a posição da mulher. Num país onde a figura feminina é a gueixa, subalterna, submissa, as Ama-San ganharam um poder, que levou inclusive a que os homens, nos anos 40, 50, 60, não tivessem que trabalhar porque elas sustentavam toda a família. Esta é uma tradição que está a desaparecer, mas as que continuam têm um orgulho e um poder quotidiano que lhes dá uma certa liberdade. Isso fascinou-me. Elas são tão frágeis como fortes. Algo que encontramos nas mulheres de uma forma geral. Esta é também uma história universal. Também procuro isso no cinema. O cinema quando é universal comove-nos.

A câmara filma vários objetos tecnológicos e de consumo que nos remetem para os dias de hoje, se não fossem esses elementos (tablet, telemóvel, comando da televisão, karaoke) esta podia ser uma história de há cem anos atrás. Pretende demonstrar que esta é uma comunidade dividida entre a tradição e a modernidade?

Acho que é um retrato extremamente contemporâneo. Embora, se retirássemos esses elementos tecnológicos, de facto, não havia referência temporal. Mas havendo, acho que retrata o momento histórico que todos estamos a viver: Agarramos a tradição ou evoluímos? Seguimos em frente e esquecemos o passado? As Ama-San vivem esta dualidade. Por exemplo, já não mergulham nuas, isso já não é permitido, usam fatos de borracha. Usam o telemóvel para saber como vai estar o tempo, embora as mais velhas ainda se guiem pelo vento ou pelas nuvens. O número de Ama-San está a descer radicalmente, porque é uma profissão sazonal, muito dura e perigosa, muitas morrem. As novas gerações não querem arriscar.

Ama-San ganhou o prémio de melhor filme da competição nacional no Doclisboa este ano, assim como outros prémios em festivais internacionais. O que representam para si estes prémios?

Representam sobretudo que estamos a trabalhar no caminho certo. Às vezes o trabalho no cinema é tão solitário, principalmente para os realizadores, por vezes não sabemos se estamos tolinhos ou a caminhar no sentido certo. Os prémios representam só isso, não à vaidade que se sobreponha a isso, que é: continua. Há um grupo de pessoas, um júri, um público que gostou também, portanto estamos juntos e isso é muito bom.

As Ama-San já viram o filme?

Já viram o filme e escreveram-me, com grande emoção, a dizer que gostaram e que consideram o filme uma celebração da vida. Achei muito bonito.