performance
Arquiteturas Silenciosas
‘Gentileza de um Gigante’ no Negócio ZDB
Numa caixa negra, um homem e uma mulher totalmente nus montam um conjunto de paisagens efémeras que pairam, na calmaria ou na destruição, sobre os nossos olhos. A mais recente criação do coreógrafo brasileiro Gustavo Círiaco, com Ana Trincão e Tiago Barbosa, passa pelo Negócio entre 30 de março e 2 de abril.
No escuro e no silêncio da sala ecoa, subtilmente, um escorrer de areias, depois terras que se revolvem com maior celeridade. Parece que o mundo se cria ou, quem sabe, se reinventa. Parecendo flutuar no espaço, destrinçamos dois corpos nus – um homem, uma mulher. Sobre uma mesa de ateliê de arquitetura inicia-se a construção de uma paisagem. São pequenas formas, árvores, arbustos, pedras, troncos que, metodicamente, os dois performers vão dispondo, e voltando a dispor, sobre o horizonte no qual se fundem.
Subitamente, uma fúria impele os “arquitetos” deste mundo. À semelhança da natureza, ou do próprio homem, tudo é alterado, ou até mesmo destruído, para se construir de novo. Até à projeção de um novo mundo, de um outro horizonte. Sempre efémero.
Em Gentileza de um Gigante, Gustavo Círiaco, coreógrafo e artista concetual natural do Rio de Janeiro e residente em Lisboa, cria um espetáculo subtil e de rara beleza, com o crivo das preocupações ecológicas. Num diálogo simultaneamente livre e metódico entre os performers Ana Tricão e Tiago Barbosa e a construção de paisagens com vestígios naturais (pequenas plantas, ramos de árvores, pedras recolhidas numa residência artística em São Miguel, etc.) propõe-se “uma reflexão sobre o modo como a humanidade altera a paisagem para mudar o mundo e servir-se dele”.
“Aquilo que mostramos são já paisagens silenciosas que remetem para o antropoceno [tempo geológico que vivemos, profundamente influenciado pela ação humana], no qual o homem acelera quaisquer mudanças naturais no planeta”, sublinha Círiaco. Este silêncio justifica-se na existência de um mundo natural que persiste. Porém, perdeu a vida devido à intervenção do Homem – o coreógrafo lembra o caso do Rio Doce, no Brasil, “que continua a correr, embora sem vida alguma”.
Imitando a Natureza (humana), com a sua força criadora, mas também destruidora, os dois performers estendem a paisagem. São eles o “criador de mundo”, “o arquiteto”, o “gigante” do título que “faz no teatro a invenção da paisagem”. São um homem e uma mulher, elementos de múltiplas simbologias (humanidade, criação, Adão e Eva…), inventores de inúmeras ficções, dos grandes mistérios. Eles movem-se, movem os elementos, mas nunca se olham apesar de nesta paisagem haver “sexo e uma notória volúpia do fim”. O da própria espécie, “o da natureza sublime que nos colocou lado a lado”.
E nós olhamos, e fazemos a história. Pensamos que ali discorre uma síntese de mundo, até que tudo se apaga, a mesa de arquiteto esvazia-se e no lugar do homem e da mulher já só resta o vazio.