Guilherme Gomes

"O mundo te saúda, ó Príncipe da Dinamarca”

Guilherme Gomes

Mal entramos na sala do Teatro do Bairro Alto, o jovem ator Guilherme Gomes fixa-se no belíssimo cenário que Cristina Reis concebeu para o Hamlet da Cornucópia, que volta estar em cena a partir de 18 de setembro, depois da estreia no último Festival de Almada. Entre o sorriso e o percetível nervoso miudinho que o invadem, confessa voltar a sentir um formigueiro no estomago, se bem que ainda faltam alguns dias para voltar a encarnar o Príncipe de Dinamarca...

Para trás ficaram duas representações da peça e, agora, é tempo de voltar ao trabalho. A prioridade máxima, sublinha o ator, é adquirir a melhor forma física. Desde que voltou de férias em Viseu, sua cidade natal, corre diariamente no Estádio Universitário. “O corpo tem de estar preparado para o nível de exigência deste espetáculo”, acrescenta, lembrando que se avizinha um ciclo longo de representações que começa em Lisboa e se conclui em novembro, uma vez mais, em Almada.

Sentamo-nos à conversa, e o Hamlet mais jovem do teatro português parece esquecer o formigueiro que o assaltou há minutos. Apesar de se considerar tímido é um conversador nato, e ao longo de quase uma hora, falou de um papel que qualquer ator sonha fazer, das ligações afetivas e profissionais com Luís Miguel Cintra e os “colegas” da Cornucópia, de Viseu, de um concurso de televisão que o retirou do anonimato por via da poesia e da particular influência que trabalhar com Luísa Cruz, em Íon, teve em tudo o que se seguiu na sua vida de ator.

Por quantas noites de insónia passaste quando o Luís Miguel Cintra te desafiou a interpretar o papel de Hamlet?

Na altura, fiquei particularmente contente. O desafio foi feito de um modo algo peculiar: o Luís Miguel trouxe-me um saco com uma série de livros na sequência de algumas conversas que mantivemos e, por entre peças de teatro e antologias de poemas que ele me foi apresentando, anunciou que, no fundo do saco, havia um segredo. Esse segredo era o Hamlet traduzido pela Sophia de Mello Breyner.

Mas, no momento, pensaste que isso iria querer dizer seres tu o protagonista?

De modo algum. Sabia-se que a companhia queria fazer o Hamlet, mas só depois é que ele me anunciou que o queria fazer comigo. Recordo que, talvez a seguir ao Pílades, o Luís Miguel enviou-me uma mensagem de email anunciando que tudo se compunha para que o Hamlet avançasse. No final, dizia qualquer coisa como “o mundo te saúda, ó Príncipe da Dinamarca”. Foi ai que começou a surgir uma espécie de peso sobre mim…

E chegaram as insónias…

Essas vieram mais tarde, mais próximo da noite de estreia em Almada [risos]. Sempre tentei que a responsabilidade e importância do papel não me prendessem de alguma maneira. Pensei sempre que, independentemente de ser o Hamlet, haveria de dar muito prazer fazer o papel. E assim foi. Cheguei a ir para os ensaios com a sensação de que até não seria assim tão difícil – estava enganado…

Porquê? Sentiste alguma insegurança?

Insegurança não, mas só com os ensaios é que percebi o quão complexo é o personagem. Porém, toda a equipa da Cornucópia dá-nos a segurança da inteligência e do pensamento, e isso foi fundamental para me tranquilizar e seguir em frente.

Chegaste a pensar ser novo demais para fazer um papel que é tão ambicionado por todos os atores?

Penso que as pessoas sentem isso mais do que eu. Desde que conheço o Luís Miguel percebo que a escolha dos atores depende do caminho por onde ele quer levar o espetáculo. Neste Hamlet, o intérprete teria de ser necessariamente jovem, fosse eu ou outro colega. Isto porque, aqui o Hamlet tem 22 anos. A partir do momento em que percebi esta, digamos, consciência do espetáculo, a minha juventude deixou de ser, se é que alguma vez foi, um entrave ao desempenho do papel. Isto não quer dizer, é claro, que o trabalho não é de uma brutal exigência e requer muito sacrifício e sofrimento.

Fala-nos um pouco da estreia em Almada, naquele que foi o primeiro momento de te mostrares ao público enquanto Hamlet…

Nesta casa – o Teatro da Cornucópia – aprendi sempre que se algo não corre bem sobre o palco, se há um momento em que nos perdemos ou algo toma indevidamente a nossa atenção, agarramo-nos ao colega, e ele está lá para nos amparar. Isso faz com que nos consigamos abstrair de ser o foco do público e enfrentar o habitual nervosismo no momento de subir ao palco. Naquela noite, quando terminámos e fomos agradecer os aplausos, senti toda uma comunhão muito singular entre os atores que, de algum modo, me retiraram o peso de ter interpretado o protagonista.

Houve algum momento, nessa noite, em que te sentiste vacilar?

Houve uma situação curiosa: durante os ensaios, eu ia comendo cada vez que saía de cena. Naquela noite, devido ao nervosismo, custava-me bastante comer e, praticamente, nem bebi água. No final, senti-me extremamente enfraquecido e pensei que ia desmaiar. Outra curiosidade teve a ver com o público: em determinadas cenas, as pessoas riam, e a dada altura só me questionava sobre o que se estava a passar. Lembro-me de, no final, termos concluído que o Hamlet é, afinal, um personagem cómico [risos].

No âmbito da preparação para o papel, fizeste muito trabalho de casa por tua autorrecriação?

O Luís Miguel forneceu-nos imenso material e recordo particularmente um dvd chamado Acting Shakespeare, produzido pela Royal Shakespeare Company,  que me ajudou muito na composição do papel. Por acaso, descobri aqui no teatro um livrinho sobre A Sonata dos Espectros, de August Strindberg, espetáculo que a Cornucópia fez há quase trinta anos. No final, havia uma referência ao quadro de [Arnold] Böcklin A Ilha dos Mortos. Aquela pintura inquietou-me, e confesso ter-me transportado para o universo preciso deste trabalho. Tem graça que, desde os meus tempos de escola, sempre tive uma certa tendência para estudar um pouco ao lado dos manuais e estabelecer paralelismos com outros materiais. Aqui aconteceu isso.

“O Luís Miguel Cintra enviou-me uma mensagem a anunciar que o ‘Hamlet’ se fazia e no final, dizia ‘o mundo te saúda, ó Príncipe da Dinamarca’.”

 

Os teus primeiros minutos de fama deveram-se à televisão, quando tinhas apenas 17 anos e surgiste a recitar poesia num concurso de talentos. Naquele tempo, já tinhas decidido que irias ser ator?

Na altura estudava Ciências, e até conclui o meu 12.º ano na disciplina de Física. Esse concurso de talentos foi uma espécie de rebeldia da adolescência [risos]. Quando apareci no programa queria promover a ideia de dizer poesia e, confesso, nunca esperei ter grandes resultados. O certo é que cheguei mesmo à final do concurso…

Mas nesse concurso revelaste uma capacidade enorme de seres mais do que um declamador. Um dos membros do júri, o encenador Ricardo Pais, frisou bem isso…

Para se perceber melhor, vou começar pelo princípio. Os meus pais não veem do meio artístico, mas são espetadores regulares de teatro. Desde muito jovem fui participando em workshops das mais diversas áreas artísticas promovidos pelo Teatro Viriato [em Viseu]. Sem me aperceber, passava a vida no Teatro, como se fosse absolutamente normal passar quase todos os meus tempos livres naquele espaço. Um dia, inscrevi-me no projeto PANOS [iniciativa da Culturgest para teatro juvenil] e aquilo foi uma experiência reveladora…

E decisiva para seres ator?

Quase… Andava no 9.º ano, penso eu, e um professor de português escreveu no quadro a frase “põe quem tu és no mínimo que fazes”. Achei-a grandiosa e pus-me a pesquisar, acabando por descobrir que aquela frase era um verso de um poema de Fernando Pessoa/Ricardo Reis. Foi o início da minha paixão pela poesia. Assim, comecei a gravar em vídeo poemas de que gostava e a partilhá-los no You Tube. Aquele meio era uma espécie de refúgio para o miúdo que queria fazer teatro e continuar a experiência do PANOS, mas vivia em Viseu, uma cidade que não tinha ensino artístico.

Por isso concluíste a tua escolaridade em Ciências…

Exato. Quando fui ao concurso já estava decidido, após concluir o 12.º ano, ir estudar Teatro para Lisboa. Aos 18 anos, deixei Viseu, cidade em que, graças à televisão, toda a gente me conhecia e acarinhava, e vim para cá, onde estava completamente anónimo.

Fizeste o Conservatório, um estágio aqui na Cornucópia e, de repente, estavas a interpretar o Íon no palco do Teatro São Luiz…

O meu ano de Conservatório teve a grande sorte de ter vindo para a Cornucópia, a meio do curso, fazer um estágio no âmbito de um espetáculo baseado em teatro de cordel. Foi apenas uma semana, mas o suficiente para estabelecermos uma relação próxima com a companhia. Um dia, o Luís Miguel contacta-me, na sequência de também ter descoberto na internet as minhas prestações no concurso de talentos, e convida-me para fazer o Íon. Ali tive o privilégio de trabalhar com grande atores, e uma menção muito especial vai para a Luísa Cruz que, durante um ensaio que correra bastante mal, disse-me: “errar é normal, o truque está na maneira como lidamos com o erro”. Foram palavras determinantes para lidar com os meus receios e que jamais esqueci.

Tem sido tudo muito rápido no teu percurso de ator. Para usar um lugar-comum, já sentes o palco como a tua casa?

Sinto-me muito bem em palco, mas faço por olhar para o teatro como a concretização da vontade de fazer coisas legíveis que convoquem as pessoas. Houve uma altura em que via o palco como um lugar sagrado, sobretudo porque ainda não sabia se o meu futuro havia de passar por ele.  Noutras fases, e porque sou muito tímido, o palco era como que uma espécie de terapia. Hoje, é um sítio que respeito, que vejo como um veículo para chegar às pessoas. Daqui para a frente, e tenho até um projeto com colegas de Conservatório, interessa-me derrubar a barreira do palco e fazer do teatro um sítio pleno de partilha, um catalisador de pensamento. Para mim, um bom espetáculo de teatro deve ser comouma boa conversa, onde partilhamos, onde pensamos e onde refletimos em conjunto.