O teatro debaixo da areia

'O Público' de Lorca, segundo António Pires

O teatro debaixo da areia

Um espetáculo a três tempos com igual número de espaços cénicos para permitir a leitura das grandes dimensões da peça de Federico Garcia Lorca. No Teatro Municipal São Luiz, no Largo Camões e no Teatro do Bairro, em viagem, buscando a verdade através da arte, ou o “teatro debaixo da areia” de Lorca, segundo António Pires.

“Está ai o público.” “Que entre”, responde o Diretor de uma companhia de teatro ao ar livre ao anuncio do Criado. Por esta altura já o público percorreu um longo corredor do Teatro São Luiz e se instalou no palco. A cortina fechada oculta a plateia de cadeiras vermelhas, vazias. O público, esse, já sente as “entranhas do teatro”. Dentro de momentos, a cortina abre-se. O espetáculo está a começar, e vai representar-se Romeu e Julieta, de Shakespeare. Erguem-se as máscaras que ocultam a verdade e alimentam as ilusões, num duelo entre o lado de cá e de lá dos biombos espelhados que nos separam, a nós, o público, da plateia vazia em fundo. Este é o “teatro das convenções”, mascarado e frio, que Lorca sentia querido pelo público, normalmente indiferente e insensível à procura da verdade através da arte.

Soltando amarras, o espetáculo prossegue, como se colocasse “o céu numa sala de teatro” que agora não existe. Estamos no Largo de Camões, ao ar livre, onde se faz ouvir o “manifesto de Lorca”, lido por Margarida Vila-Nova (antes, sobre o palco do São Luiz, a actriz era Julieta), num encontro com as palavras cantadas de Poeta em Nova Iorque, pela voz de Mitó Mendes (A Naifa). Para o encenador António Pires, este momento partilhado pelo público vindo do teatro e o público acidental, ocasional ou errante da praça lisboeta fixa a mensagem de Lorca: “o público não pode nem deve intervir no mais íntimo da criação artística”. A bem da verdade através da arte.

Margarida Vila-Nova numa cena de ‘O Público’

 

Último momento. Derradeiro. No Teatro do Bairro, em torno de uma caixa de areia, todas as máscaras caem. É, por fim, o tempo da verdade através da arte, do “teatro debaixo da areia”, da imaginação e da alegoria. Aqui pulsam os sentimentos e quebra-se a máscara. O próprio Lorca deixa cair a sua, assume e aborda a sua homossexualidade, e encontra-se consigo mesmo dentro do teatro. Deste teatro onde, partidas as portas, levantado o teto, apenas restam “as quatro paredes do drama.”

O Público enquanto manifesto pela liberdade

Não é estranho reconhecer em O Público os ecos surrealistas que abalaram Federico Garcia Lorca (1898-1936) nos finais da década de vinte e princípios de trinta do século passado, por via da influência de amigos como Buñuel e Dalí.  Mas, se a peça repercute esses ecos, acima de tudo, ela é como que um manifesto pessoal sobre o teatro e a arte, onde o mundo intimo do autor, inclusive a sexualidade, se liga estreitamente às suas conceções criativas. Ao opor aquilo a que chamou o “teatro das convenções” ao “teatro debaixo da areia”, Lorca procurou um caminho para que cada um encontrasse, nas palavras de António Pires, essa “espécie de laboratório crítico de nós mesmos”. Precisamente no último, nesse “teatro debaixo da areia”, aquele que é mais livre, mais abstrato e criativo.

Ao opor aquilo a que chamou o “teatro das convenções” ao “teatro debaixo da areia”, Lorca procurou um caminho para que cada um encontrasse, nas palavras de António Pires, essa “espécie de laboratório crítico de nós mesmos”.

 

Ao aliar ao texto de O Público passagens de Poeta em Nova Iorque e outros escritos do poeta e dramaturgo produzidos na mesma fase, o espetáculo de Pires – que o encenador chega a adjetivar como “pintura surrealista” – assume o caráter de manifesto, também ele muito pessoal, a favor da liberdade criativa dos artistas, num período em que se parece querer fazer depender a criação das vontades do público.

A peça vai estar em cena ao longo de 11 noites, de 5 a 16 de junho (exceto dia 12), e conta nos principais papéis com Adriano Luz, como o Diretor, Margarida Vila-Nova, como Julieta, e Laura Soveral, no papel de Prestidigitador.