A mulher que foi a Auschwitz e voltou

'A Coragem da Minha Mãe' no Teatro da Politécnica

A mulher que foi a Auschwitz e voltou

Em julho de 1944, em Budapeste, a máquina de morte nazi deporta para Auschwitz cerca de quatro mil judeus. Entre os “deportáveis” estava a senhora Tabori, uma mulher que, com um misto de astúcia e sorte inacreditável, escapa ao terrível destino. Jorge Silva Melo encena A Coragem da Minha Mãe, tragicomédia de George Tabori sobre a memória e a infâmia, aqui protagonizada por Pedro Carraca e Antónia Terrinha.

Elsa Tabori teria 55 anos naquele dia de verão de 44, “um ano extraordinário de colheitas para a Morte”, como o caracteriza o seu Filho logo no início da peça. É ele o narrador deste conto dramático que acompanha 14 horas da vida de uma mulher. Em causa, um episódio real tão inacreditável que parece ficção.

A Coragem da Minha Mãe é “a resposta subversiva” do dramaturgo e encenador George Tabori à Mãe Coragem, do seu mentor e inspirador Bertolt Brecht. E, como repara Jorge Silva Melo que agora leva o texto a cena, não seria descabido chamar-lhe “a lata da minha mãe”, dada a quase inverosímil forma como a senhora Tabori escapou a Auschwitz, tendo lá estado por umas horas, e conseguido acabar a noite na sua Budapeste natal, a jogar rommé em casa da irmã.

Na génese da peça está um manuscrito de Elsa Tabori, escrito a seguir à guerra, após o filho George a ter desafiado a registar a história da sua vida. Ao que consta, o documento dedicava umas quantas páginas à surpreendente fuga da mulher à morte certa, no tenebroso verão de 1944. Após a morte de Elsa, em 1963, George Tabori escreveu um conto baseado nesse episódio de coragem, de desespero e de particular fortuna. Anos mais tarde, A Coragem da Minha Mãe deu origem a uma peça radiofónica, até chegar ao palco em 1979, protagonizada na estreia por Hanna Schygulla.

A peça tem, como verifica Silva Melo, “qualquer coisa a lembrar os gags dos filmes mudos”, usando a narrativa para “denunciar o mal mas, ao mesmo tempo, convocar o riso”. Tabori parte da autoridade de vítima para o fazer, ele que haveria de dedicar ao tabu em torno do Holocausto outras “paródias”, como a comédia negra Mein Kampf, que rouba o título diretamente a Hitler, e é, talvez, a sua mais famosa e polémica peça.

Silva Melo justifica a subversividade do autor na abordagem de um tema tão delicado, e ainda hoje fraturante (sobretudo na sociedade alemã), com o olhar para “o malévolo como qualquer coisa de tão absurdo e grotesco que deixou de ser verossímil para a vítima.”

Com elementos narrativos muito acentuados, A Coragem da Minha Mãe funciona como  jogo da memória – a do Filho, que conta a história, intercalada pela da Mãe, que aponta, contradiz ou corrige factos e pormenores –, onde o faz de conta do teatro se esgrime com a autenticidade da história contada.

Essa tensão sublinha-se na encenação que, para além do Filho (Pedro Carraca) e da Mãe (António Terrinha), apenas coloca em cena uma outra personagem: o oficial nazi (Hélder Braz) que, entre o risível e o absurdo, se torna determinante para a boa fortuna de Elsa. Todas as outras personagens surgem em off. São “vozes da memória” (as de Carla Bolito, Américo Silva, António Simão, João Meireles, Nuno Gonçalo Rodrigues, Pedro Caeiro, Tiago Matias e do próprio Jorge Silva Melo) surgidas para acentuar esse “gosto de Tabori em conceber a personagem como uma estátua inacabada.”

O espetáculo tem estreia marcada para 18 de novembro, no Teatro da Politécnica, mantendo-se em cena até 19 de dezembro, com récitas de terça a sexta às 19 horas, e ao sábado, com dupla sessão, às 16 e 19 horas.

Atenção: Devido à crise sanitária, as récitas marcadas para os sábados foram suspensas.