Pedro Carneiro

"O maestro serve como uma espécie de GPS, é os ouvidos de todos os músicos"

Pedro Carneiro

O instrumentista e maestro Pedro Carneiro é um verdadeiro apaixonado pelo universo musical em todas as suas vertentes. Estudou vários instrumentos e fundou a Orquestra de Câmara Portuguesa (OCP) e a Jovem Orquestra Portuguesa (JOP), das quais é diretor artístico e maestro titular. Estivemos à conversa com o músico sobre a magia que acontece numa orquestra, e ficámos a saber o que esperar do concerto que dirige no próximo dia 27, no Centro Cultural de Belém.

Começou a estudar música muito cedo. Quando percebeu que tinha talento para a música?

À semelhança de tantas, comecei a estudar música em criança. No entanto, com a diferença de ter crescido num ambiente propício ao desenvolvimento do interesse pela música, com um pai que era músico profissional e uma mãe muito interessada nas artes cénicas. Acabei por passar muito tempo a assistir aos bastidores de todo o tipo de ensaios de concertos e de produções artísticas, o que me levou a ficar com esse bichinho.

Foi difícil escolher o instrumento que queria estudar?

Foi difícil porque tenho muito interesse por todo o tipo de instrumentos. Daí ter aterrado mais tarde na percussão, por ter esta paleta ilimitada que só a própria imaginação define. Acabei por ficar pela família de instrumentos de percussão pelas possibilidades que oferecem. Daí, a minha primeira paixão ser também a orquestra, já que é o epítome dessa descoberta sonora, porque é um instrumento que não só é feito por múltiplos instrumentos, mas, muito melhor do que isso, é feito por pessoas que estão ali por trás, através do legado das partituras. Uma coisa são os livros, as partituras, as pautas, que nos deixaram grandes criadores e criadoras. Outra coisa é o momento em que nasce a música, quando essas pessoas se reúnem à volta desses livros. De facto, a música também pode ser uma arte social. Eu sempre estive mais interessado na vertente mais social da música, pelo lado de laboratório que tem a construção de imaginar novos sons, novos instrumentos, novas formas de tocar, mas também da orquestra, por também ter esse lado de experimentação sonora e social, de poder interagir com outros artífices sonoros, que são os músicos, na descoberta de outras sonoridades. E claro, com a descoberta destas sonoridades vem também a descoberta de outras formas de conhecimento, de outras formas de expressões possíveis nesse âmbito de expressões infinitas que o ser humano tem, tanto individual como coletivamente.

Para se ser um músico de sucesso é necessário ter um talento inato ou é possível apenas com trabalho?

Isso é uma pergunta muito interessante. Ultimamente até se tem debatido muito sobre o que é o talento. Culturalmente, existe uma noção do que é a habilidade, de uma pessoa ter uma habilidade fantástica para um determinado desporto, por exemplo, e cria-se a ideia de que não é preciso trabalhar porque há um talento natural. Aliás, há uma série de programas que a reality TV trouxe e que permite às pessoas mostrarem os seus talentos e as suas paixões. No entanto, isso pode passar a ideia de que um talento artístico apenas é possível se a pessoa tiver uma habilidade natural para aquela atividade. Para ser artista não basta gostar, é preciso querer muito. Claro que ter sensibilidade para os sons e uma certa velocidade de processamento poderá ser um bónus, mas é preciso ter uma resiliência extraordinária. É preciso ter vontade de trabalho, disciplina e uma vontade enorme de passar pelo processo, que, no caso de aprender um instrumento musical, passa por estar sozinho durante períodos consideráveis, com frequência diária, para apreender uma série de competências. É preciso ter uma apetência natural pelo processo de se tornar músico. Acima de tudo, é preciso ter vontade para o trabalho.

Para além de tocar vários instrumentos e de ser maestro, também é compositor. Como gere todas estas facetas?

Esta minha paixão pelas diversas facetas da música tem a ver com uma curiosidade que sempre tive de tentar desmontar qualquer mecanismo para perceber como é que funciona ,e a seguir, voltar a montá-lo. Comecei a compor também pela curiosidade de saber como é, para um compositor, sentar-se e lidar com a página em branco. Não são atividades que faço todos os dias das dez ao meio-dia. Para mim foi sempre uma forma de me equipar da forma mais íntegra, mais holística e perceber todo o processo para, quando estou a dirigir uma orquestra, ter uma noção muito clara do que é tocar um instrumento, do que é organizar um concerto, do que é escrever uma peça. Gosto de perceber o que é que o músico sente quando entra em palco e de qual é a expectativa do público. Também é muito interessante utilizar a música como uma linguagem. Podemos reunir, à volta de uma partitura, um grupo de pessoas de idades diferentes, com experiências diferentes, que podem nem sequer falar o mesmo idioma e elas conseguirem comunicar.

É também cofundador, diretor artístico e maestro titular da Orquestra de Câmara Portuguesa (OCP), que fundou em 2007, e da Jovem Orquestra Portuguesa (JOP), fundada em 2010. O que o levou a criar duas orquestras de raiz?

Há 18 anos juntei-me a Teresa Simas e a Alexandre Dias para fundar a OCP. Na altura, não existiam projetos em Portugal que criassem oportunidades para novos maestros e novos intérpretes. Isso era algo que não existia, pelo menos da forma como nós imaginávamos. Imaginámos também que toda a hierarquia da orquestra seria um bocadinho dissolvida e que os músicos teriam oportunidades mais equilibradas entre eles. As orquestras nasceram por volta de 1600 e no auge do romantismo musical cristalizaram-se, com todas as posições hierárquicas bem definidas. Na altura, fazia-nos sentido ter um coletivo de músicos que partilhasse essas responsabilidades de forma a poder fazer ensaios que fossem mais democráticos, no sentido em que os músicos pudessem partilhar as suas ideias e preocupações. No fundo, trazer um bocadinho da filosofia do Alexandre Dias, da dança da Teresa Simas, e do meu universo musical, para ali. Ao longo destes 18 anos foram nascendo uma série de projetos: a JOP; a Orquestra dos Navegadores, que é uma orquestra de crianças, um projeto social que temos em Oeiras; e também o Notas de Contacto, uma miniorquestra de pessoas com deficiência intelectual, que funciona há mais de 15 anos em parceria com a Cerci de Oeiras. Somos uma mini-fundação com todas estas iniciativas cujo objetivo é inspirar músicos e artistas a transformarem o mundo.

A JOP nasceu em 2010, sob direção artística do maestro Pedro Carneiro  ©Bruno Vicente

De que forma se podem cativar novos públicos para a música clássica?

A orquestra produz algo que é imaterial, não é uma coisa palpável, mas é concreta, e por isso é uma experiência transformadora e eterna, porque muda a pessoa que a vive, o seu próprio comportamento e a sua essência, que irá, por sua vez, transformar os outros. Existe a ideia de que a música clássica tem um público muito envelhecido. É difícil trazer novos públicos porque a multidimensionalidade da música clássica faz com que seja desafiante ouvi-la. Não faço parte do grupo de arautos que estão permanentemente a querer simplificar a música clássica. Nós queremos é trazer as pessoas para dentro desta experiência, por isso é que tentamos inovar de várias formas: fizemo-lo, o ano passado, com a JOP quando lançámos o desafio aos músicos de tocarem a Sinfonia do Novo Mundo de Dvorák completamente de cor, sem partituras; metemos a orquestra a tocar de pé; a Jovem Orquestra Portuguesa todos os dias tem uma aula de consciência corporal (que pode ser yoga ou hip hop), e pretendemos também receber uma série de tertúlias. Este verão, vamos ter a Inês Pedrosa, que nos vem falar sobre a música das palavras. Vamos também ter pessoas a falar de sustentabilidade e de muitas outras coisas. Queremos abrir um bocadinho o leque de possibilidades para que estes jovens músicos e todos os que colaboram connosco possam contribuir, através da sua arte, de forma mais eficaz para pôr a sociedade a ouvir música clássica.

Compõe para teatro, dança e cinema. Isso prova que a música é uma das mais ricas formas de arte, porque toca em todas as outras?

A música também tem limitações. Processa-se no agora, é necessário passarmos pela experiência do início ao fim. Por isso é que ouvir música contemporânea, mais abstrata, é tão desafiante. Se olharmos para um quadro com uma banana colada com fita cola na parede, podemos ficar a olhar, sair, passear livremente pelo museu de arte contemporânea e ficar o tempo que quisermos, no ângulo que quisermos. A música, para se perceber, tem de se passar pelo todo, sendo que é uma arte temporal. Tem a capacidade de ser tantas coisas diferentes e de servir tantos propósitos… Repare, numa cena aterradora de um filme, se pusermos uma valsinha com um acordeão, aquilo de repente já não é assim tão assustador. Também há música que pode potenciar uma bela soneca, aliás, é fantástico quando as pessoas adormecem nos concertos porque a música também pode induzir o sono. A música tanto pode servir de banda sonora num elevador, como para reunir um grupo de melómanos tão aficionados que atravessam fronteiras para ir ouvir uma determinada ópera…

Como se gere o erro numa orquestra? Que papel tem o maestro?

Há várias formas de falhar. Uma, por exemplo, é fazer uma espécie de quiet quitting, que é tocar tudo o que está escrito, mas sem grande envolvimento. Às vezes, os concertos mais interessantes são aqueles onde acontece um disparate, que pode ser alguém que arriscou tanto e que falhou, mas que inspirou todas as outras pessoas a sair fora da zona de conforto. Numa época, vamos-lhe chamar pré-gramofone, onde as pessoas podiam tocar sem o concerto ser visualizado posteriormente, o risco era imensamente apreciado. Quando as pessoas assistem a um concerto, não vão ouvir a versão definitiva. Vão ouvir o que é que surge naquele momento. Um concerto é como uma refeição feita naquele momento: nós sabemos que tem todos os ingredientes, mas naquele dia tem um twist especial. O maestro, como não está a tocar nenhum instrumento, tem a maior acuidade auditiva para poder guiar os músicos. Cada músico tem uma esfera à sua volta em que consegue ouvir, mas depois é muito difícil, no meio de um naipe de violinos alargado, conseguir escutar o outro lado da orquestra. Portanto, o maestro serve como uma espécie de GPS, é os ouvidos de todos os músicos. Permite que estes se possam exprimir de forma coletiva e se possam sentir realizados com esse contributo individual no coletivo. Essa comunicação é não verbal, há uma mimética que é feita e que é, também, uma linguagem, por sinal, universal.

Ao longo da sua carreira, tem recebido inúmeros prémios e tocado com diversas orquestras internacionais de prestígio. O que lhe falta fazer?

Gostava de ver, finalmente, um reconhecimento político pelo trabalho que fazemos na JOP. De sentir que não é necessário trabalhar 24 sobre 24 horas para ter os apoios necessários. Não me posso queixar de todo o reconhecimento que tenho mas, do ponto de vista coletivo, do trabalho que fazemos, era algo que gostaria de ver reconhecido para podermos passar a outro patamar, podermos concentrar-nos naquilo que é a nossa missão e não apenas, como tanta gente em Portugal na área da Cultura, na gestão do dia a dia e na angariação de fundos. Seria aí que me sentiria reconhecido como artista em todo o investimento feito nestes últimos 20 anos. Ter uma subsistência financeira que não obrigasse toda a gente a este sobressalto permanente.

Tem algum compositor preferido?

Há pessoas que têm compositores favoritos, isso é absolutamente legítimo, mas há tanta música fascinante… Gosto de ouvir a composição que o Francisco Lima da Silva acabou de fazer para a JOP da mesma forma que gosto de ouvir o Concerto para Violoncelo de Schostakovich, ou o romantismo de Johannes Brahms, ou músicas que nos deixaram compositores do Barroco. Com essa viagem e com esse conhecimento acabamos por perceber que há música que exprime sentimentos que são universais, como acontece com o Teatro ou com a Literatura, e que foram feitas com as ferramentas que as pessoas tinham na época. Sendo músico profissional, faz parte da minha missão interpretar, com o mesmo fulgor, composições com as quais posso não ter afinidade, mas é sempre possível encontrar um ponto de interesse.

A 27 de julho apresenta-se com a JOP no CCB. O que vamos poder ouvir?

Vamos tocar com um violoncelista russo fantástico, o Pavel Gomziakov, que nos traz Dmitri Shostakovich (1906-1975) e o Concerto para Violoncelo, uma peça absolutamente incrível. Depois, temos, do nosso compositor em residência na JOP, o Francisco Lima da Silva, a estreia absoluta da peça Bliss (not), que fala um bocadinho das preocupações que as novas gerações têm com os tempos em que vivemos. Na segunda parte tocamos uma das peças mais inspiradoras do Romantismo, a 2ª Sinfonia de Brahms, carregada de alegria e júbilo do início ao fim. Tudo isto num palco cheio de jovens e talentosos músicos. Melhor receita para um bom fim de tarde não poderia haver.