entrevista
Olga Roriz
"A arte do espetáculo é pôr cada pessoa do público a criar o seu próprio espetáculo"

De dez em dez anos, Olga Roriz sente a necessidade de se desafiar num solo. A partir de 9 de julho apresenta O Salvado, na sala Luís Miguel Cintra do Teatro São Luiz, sozinha em palco. Resultado do conjunto de residências que tiveram lugar o ano passado, o espetáculo dá a ver o que se salvou do diálogo entre o corpo da bailarina de 70 anos e a cabeça da coreógrafa.
O escritor George Orwell disse que aos 50 anos todos temos a cara que merecemos. Em que idade um bailarino tem o corpo que merece?
Não existe uma verdade universal. Depende do próprio bailarino, da pessoa em si e do seu corpo. Depende sobretudo daquilo que ele faz: se está numa companhia de repertório e precisa de fazer clássico e contemporâneo; ou se está numa companhia de autor, onde o coreógrafo trabalha com o que o bailarino possa dar. Tenho bailarinos com 45, 46 anos que estão no auge da sua carreira. É diferente trabalhares sobre as tuas capacidades ou sobre as capacidades dos outros. O bailarino pode estar junto de um coreógrafo que trabalha sobre a própria linguagem do bailarino, sobre a técnica que possui e sobre o seu estado adulto, a sua maturidade e universo criativo; ou então esse coreógrafo está só a trabalhar sobre o seu próprio universo criativo, e quer corpos (intérpretes também) ágeis, com energia, jovens, para fazer as suas peças. São realidades completamente distintas.
Foi impelida para este espetáculo, O Salvado, em resposta ao conjunto de efemérides – 70 anos de idade, 50 anos na dança como profissional e 30 anos da sua companhia – ou é apenas uma coincidência?
Não é uma coincidência, mas, digamos, um pretexto. Se olharmos para o meu percurso, os meus solos distanciam-se uns dos outros cerca de dez anos. Fiz o meu último solo em 2013 [A Sagração da Primavera], já passou muito tempo. É uma necessidade que vai crescendo; algo que sinto que preciso de fazer: ter de me confrontar comigo mesma. E, ao mesmo tempo, o receio deste corpo, porque me divido na intérprete e na coreógrafa. Que linguagem esta mulher de 70 anos tem no seu corpo que possa, de alguma forma, dialogar com a sua cabeça?
O que se pretende salvar e do quê nesta coreografia, na qual da direção à interpretação é a única protagonista?
Em fevereiro de 2024 fui pela primeira vez para o estúdio um bocadinho a zero. Não queria fazer uma retrospetiva de todo o meu trabalho. Não queria falar das memórias, mas do que é esta mulher e muitas mulheres que têm 70 anos, muitas delas postas de parte. Entrevistei mulheres da minha idade para perceber aonde situar o meu corpo e a minha cabeça. Fiz seis residências artísticas ao longo do ano de 2024 que foram muito importantes (uma delas em Inglaterra). Aos poucos, fui descobrindo pequenos gestos, pequenos textos, pequenas músicas, coisas na altura que me estavam a tocar, não a preocupar. A partir da quinta residência soube que queria fazer um espetáculo sobre essas residências. Sobre aquela viagem solitária comigo própria. Percebi que tinha de fazer uma “topografia” do tempo: um papel de 10 metros onde está tudo o que fui fazendo ao longo dessas residências. Tanto imagens como texto (que é todo meu e escrevi-o em várias línguas). O espetáculo é aquilo que se salvou daquelas residências.
No podcast A Beleza das Pequenas Coisas, gravado o ano passado, sugere que nesta nova criação pode surgir nua em palco. A nudez não é um elemento comum no seu trabalho que, no entanto, tem sempre muito corpo, erotismo e paixão. Porquê, eventualmente, a nudez desta vez?
Isso teve a ver com um período da minha vida, há cerca de um ano, onde de repente senti que estava mais à vontade com a minha nudez. É preciso não esquecer que um bailarino aos 4 anos já tem um espelho à frente. Na minha companhia os estúdios não têm espelhos, mas vivi toda a minha vida com espelhos e a necessidade da correção do corpo que nunca está bem. O corpo de um bailarino é sempre um corpo em correção. Não fujo à regra dos bailarinos que não gostam dos seus corpos. E com o envelhecimento ainda muito mais. O envelhecimento pode dar-se de um dia para o outro, mas a maior parte das vezes é algo que vai acontecendo. Sempre que via mais uma ruga ou uma prega, um pneu ou mais qualquer outra coisa [risos], achava que iria habituar-me a isso, e finalmente pensei que era uma mais-valia. Esse tempo a passar no meu corpo e o modo como posso o partilhar com as outras pessoas.
As referências do cinema, da música e da literatura, que em alguns momentos inspiraram a criação dos seus trabalhos, foram-se mantendo com o tempo, ou sempre houve outras que se lhes acrescentaram?
Sou influenciada por muita coisa, e há a inspiração que vem de um olhar. Sobretudo quando me proponho criar algo, de repente, esse meu instinto fica muito mais aguçado, como num predador, e qualquer coisa me pode inspirar. Tanto pode ser uma senhora a passar na rua como o filme de um grande realizador. Não faço distinção; deixo entrar. Vejo também muitas séries como a maioria das pessoas. Há pouco tempo vi Hannibal [Bryan Fuller, 2013-2015] com Mads Mikkelsen e tudo aquilo é tão maravilhoso, como quadros o tempo inteiro. Tem imagens espetaculares. Sei que estava a ver a série e pensei que precisava de ter uns cornos pequeninos no espetáculo. Tudo por causa dos cornos enormes do veado em Hannibal. Como se vê, não sou só influenciada por grandes realizadores…
Diz no documentário sobre si, realizado por Cristina Ferreira Gomes: “o que me põe feliz é ver que aquilo que me fere, depois está ali escarrapachado no palco”. Conseguiria fazer uma peça sobre a alegria ou a felicidade?
Sim. Por exemplo este solo tem esse bem-estar, essa alegria. O que de todo não me interessa é fazer algo de kitsch sobre o amor, a felicidade, e só. Isso pode ser a “cama” como no Deer Hunter [O Caçador, 1978, de Michael Cimino], em que nos dão a “cama” daquele casamento para a eternidade, maravilhoso; e em seguida a cena da roleta-russa que nos deixa imediatamente atónitos. É a mesma coisa num espetáculo. Podes fazer uma “cama” onde pareça que tudo corre bem, para surpreender depois o público que não está preparado para levar um “soco no estômago”. Esses contrastes são coisas que me interessam: nos meus espetáculos e naqueles que vejo feitos por outras pessoas. Pelo sentido de humor, pela delicadeza, pela ternura que depois se desvanecem numa violência enorme.
Alguma vez passou pela sensação que pode ser descrita como bloqueio do coreógrafo? Como se desbloqueia?
O bloqueio, que não chamaria de “bloqueio do coreógrafo”, é uma situação diária. Estamos sempre colocados perante aquilo que fizemos e se o que foi feito está bem. Se vale a pena. Acabei de coreografar o solo e já estou com dúvidas se era isto o que queria fazer. São as dúvidas de qualquer artista, não apenas do coreógrafo. São questões que fazem parte da vida: será isto que quero fazer, e desta forma? Não digo que seja um questionamento diário, porque teria um peso demasiado grande, mas é recorrente.
É importante para si que o espectador consiga discernir um fio narrativo na sequência de acontecimentos em palco?
Nenhum! [riso] Não me preocupa se aquilo que as pessoas entendem ou acompanham corresponde ao que está na minha cabeça. Procuro, aliás, uma possibilidade de abertura ao que cada pessoa traz do seu passado, das suas vivências ou experiências. Isso permite que veja a mesma coisa de modo completamente diferente da pessoa ao lado. Quanto mais aberta for a peça, mais pessoas podem percebê-la – com linhas narrativas ou não; com pequenas histórias ou sem histórias. A arte do espetáculo é mesmo essa: pôr cada pessoa do público a criar o seu próprio espetáculo.
Quando José Sasportes comparou o seu trabalho com o de Pina Bausch suscitou-lhe algum tipo de angústia da influência? A morte em 2009 da coreógrafa alemã foi mais uma prova de que ninguém dura para sempre, mas a obra dela continuará a ser dançada. Que relação mantém hoje com o legado do Tanztheater Wuppertal?
Não conhecia a Pina Bausch quando o Sasportes disse isso. Era muito novinha na altura e fui até ver o que era o expressionismo alemão. Depois, quando a conheci passei por sensações muito diferentes: “que bom!” Ou… “não vou coreografar mais! Está tudo ali, é isto que queria fazer.” Mas, ao termo-nos conhecido, percebemos o quanto tínhamos em comum (para além do aniversário, já que a Pina nasceu dois ou três dias antes de mim), como vivências da infância e adolescência. Aquela senhora era um génio. Não posso equiparar-me com ela. E, certamente que não sou a única pessoa no planeta a ter sido influenciada por ela. Do Pedro e Inês [2003], peça que me é muito cara, e que fiz para a Companhia Nacional de Bailado, disseram ser um plágio do Vollmond [Pina Bausch, 2006], feito três anos depois. Afinal, talvez tenha sido ela que me plagiou a mim [risos].
Que sensação lhe dão os prémios e condecorações? Recorda algum que tenha sido mais especial para si?
Alguns têm mais peso porque saem um bocadinho da nossa casa. De Portugal. Caso do prémio de Osaca [1º Prémio do Concurso de Dança de Osaka-Japão (1988)], que não estava nada à espera (nem sequer fui lá), e do prémio da TimeOut [Prémio da melhor coreografia da revista londrina Time-Out (1993)]. Esse último teve uma dimensão muito grande, a Lady Di acabou por me convidar para a reabertura do Teatro Savoy, sendo ela também madrinha do English National Ballet (ENB), e fiz essa peça [The seven silences of Salome] para o ENB. As administrações da Gulbenkian e do Banco de Portugal estiveram em Londres para a reposição. Ao mesmo tempo, todos os prémios são bonitos. Gosto de sentir que pensam e requalificam o meu trabalho; que sentem ter qualidade para o mencionar como algo maior.