Luca Argel e Filipe Sambado

"Já estamos numa fase em que as canções têm vida própria"

Luca Argel e Filipe Sambado

Sol em Gémeos é o nome do concerto que Luca Argel e Filipe Sambado levam ao CCB a 31 de maio. Os dois músicos parecem, à primeira vista, ter pouco em comum, mas muito mais é o que os une que aquilo que os separa. Luca Argel, músico e escritor brasileiro a viver em Lisboa há mais de dez anos, e Filipe Sambado, cantora e compositora disruptiva, conheceram-se em 2024 quando atuaram juntos no Festival Felicidade. Agora, repetem a dose.

São ambos do signo Gémeos. Que outras coincidências partilham?

Luca Argel: Nascemos quase no mesmo dia. Eu sou de 5 de junho e a Filipe de dia 6.

Filipe Sambado: Penso que de feitio não somos muito parecidas no imediato, mas temos uma coisa em comum – uma timidez aparente no primeiro contacto.

Sol em Gémeos é o nome do espetáculo que levam ao CCB este mês. Foi difícil fazer o alinhamento?

L.A.: Foi difícil no sentido de fazer a melhor combinação possível, porque há muitas possibilidades. Não é só escolher as músicas mais interessantes, mas sim as que vão soar melhor umas com as outras e que podem soar bem com as duas vozes juntas. Esse foi o grande desafio. Desta vez, a gente também vai tocar com uma banda, o que vai dar outra dimensão ao espetáculo. O nosso concerto no Festival Felicidade foi só voz e guitarra, acabou sendo um pouco a extensão da sala de ensaios. Este espetáculo vai ter mais camadas de produção e de som. Vamos poder chegar mais longe na intensidade das músicas, com a banda por trás, e explorar esse universo um pouco mais.

F.S.: Acho que as canções vão ser uma parte muito importante desta união, porque a banda vai permitir criar uma roupagem que é mais coerente e que dá um fio condutor ao concerto. As músicas não precisam de ter obrigatoriamente a mesma energia que têm nos discos. Já estamos numa fase em que as canções têm uma vida própria, já são das pessoas, não nos pertencem.

Esta não é a primeira vez que tocam juntos…

L.A.: Não nos conhecíamos pessoalmente, foi o festival que proporcionou esse encontro.

F.S.: Houve uma satisfação natural por estarmos a trabalhar em conjunto, as coisas correram de forma bastante amena e calorosa. Nunca tivemos a oportunidade de criar em conjunto e a criação tem um nível de trabalho diferente. Aqui, é um trabalho de respeito, de estarmos a trabalhar as canções da outra pessoa. Os processos de criação têm um estímulo que também é muito interessante, mas mais violento emocionalmente.

Quando compõem, têm em mente uma mensagem política?

L.A.: Essa preocupação de ter um conteúdo político ou não, ou se eu quero uma música mais tranquila, ou mais agitada, são coisas que nos vão na alma. O principal é  mantermos o compromisso com a nossa identidade, com as nossas posições, com aquilo em que acreditamos. E depois é o trabalho artístico de dar forma a esses sentimentos.

F.S.: A minha música às vezes leva com o rótulo de ser política, mas há um ativismo natural quando o assunto é mais identitário: no caso do Luca como imigrante, no meu caso como pessoa não-binária. São corpos sempre um pouco políticos. Até quando faço uma canção de amor, há um lado bastante político nisso, porque há um entendimento do que é esta ideia de género no amor também. Acordar todos os dias e ver gente a dormir em caixotes gera-me sempre algum tipo de angústia. Ou ir levar a minha filha Celeste à escola e pensar na forma como estou a ser tratada. Há coisas que são mais sociais, outras mais individuais, mas todas fazem parte de quem somos.

L.A.: O mundo é que nos coloca nesse lugar politizado quando vai contra direitos básicos, dignidade, compreensão, tolerância… Não recuar, não dar um passo atrás ou não se calar perante estas coisas é que deveria ser o natural.

Costumam receber feedback sobre o impacto da vossa música?

L.A.: Tive muito feedback de imigrantes com a música que fiz para o Festival da Canção, Quem foi?. Nem eram necessariamente queixas sobre violência, xenofobia ou falta de oportunidades. Eram mais sobre solidão, que é uma dimensão que, quando escrevi a música, nem me ocorreu muito. Estava pensando no preconceito mais visível, mas há  um lado de sofrimento invisível na experiência do imigrante. Ele não se sente amado, acolhido, não se sente uma pessoa com quem os outros querem estar e partilhar a vida, e isso é um sentimento de solidão muito profundo. Muitas pessoas, ao ouvirem a música, vieram-me dizer que aquilo ajudou, confortou essa solidão.

F.S.: É muito bom poder ajudar outras pessoas, fico contente quando isso acontece. De uma perspetiva mais filosófica, a ideia da poesia é essencialmente a de vermos explicadas coisas que não conseguimos explicar por palavras nossas. Há um momento de inteligibilidade epifânica em que dizemos: “era isto que eu estava a sentir, foi por isto que passei”. Isso é a coisa mais forte que a poesia tem no imediato.

“Há um ativismo natural quando o assunto é mais identitário”

Compor é emocionalmente duro?

F.S.: Compor, para mim, é o momento de maior satisfação do processo musical. Há partes muito matemáticas e muito científicas, mas há um momento, em termos  emocionais, em que parece que a musa entra dentro de nós e a excitação é tanta que só se compara a emoções muito próximas da paixão. Perdes o apetite, ficas a fazer a mesma coisa repetidamente, esqueces a hora.

Como funciona esse processo?

L.A.: Quando tenho uma ideia que acho que tem muito potencial, tomo nota na hora, porque sei que as coisas escapam. Já experimentei escrever músicas de muitas formas. O que gosto mais é quando o processo é lúdico, divertido, quando parece um jogo, em que estou tentando puxar um fio daqui e dali, trocando a ordem. De repente, acho que  terminou, mas no dia seguinte surge uma solução melhor do que tinha encontrado antes. Esse jogo é superexcitante, mas não sinto um alívio, como se me saísse um peso de cima.

F.S.: No processo de composição, muitas vezes o peso vem depois da canção sair. Há certos assuntos que nos atiram para a boca do lobo.

Preocupam-se com o facto de a mensagem sair do vosso controlo quando a música é lançada?

F.S.: Não é a sociedade que me preocupa, porque é com ela que quero conversar. O meu maior filtro são os meus pais, que se calhar vão perceber algumas coisas que possam não ter percebido noutras alturas. É um diálogo que tem de ser muito bem feito para poder ter essa liberdade criativa. Há coisas muito bonitas de serem faladas, mas que podem causar alguma dor em pessoas de quem gostamos. Os filtros que tenho são do meu seio mais próximo: os meus pais, a Cecília, a Celeste. Será que quero dizer certas coisas, falar sobre assuntos como drogas e consumo (que é um assunto que já abordei em várias músicas)?

L.A.: Enquanto artistas, temos uma ferramenta que gosto muito de usar, que é o ‘eu lírico’. Quando cantamos, emprestamos a nossa voz para as palavras. Aquilo não é necessariamente um reflexo de quem somos. Isso é uma coisa, às vezes, difícil de fazer entender. As pessoas acham que a nossa obra, que as nossas letras, que a nossa identidade artística equivale a nós próprios enquanto seres humanos. Não é que sejam coisas completamente apartadas, é claro que não, mas o artista é uma construção que a gente faz. Ele tem um pouco de nós, mas não é inteiramente igual ao que nós somos. É um espaço em que a gente pode experimentar vestir uma roupa que não é a nossa, quase como uma personagem.

O que andam a ouvir?

F.S.: Tenho ouvido Kali Uchis, Kilo Kish, Tixa (uma nova voz da música portuguesa). Também tenho ouvido o disco do Romeu Bairos, Romê das Fürnas. Gostei muito do disco Pastoral, da Emmy Curl.

L.A.: O último disco que ouvi e que gostei muito foi da Capicua, Um gelado antes do fim do mundo. E quero ouvir umas coisas novas que saíram no Brasil, como o disco da Josyara.