Os livros de março

Oito livros para ler e partilhar

Os livros de março

“Sou um poeta-pintor mas é com a própria vida que crio a minha arte de ver”, escreveu Ana Hatherly na suas belíssimas Tisanas. No mês em que se celebra do Dia Mundial da Poesia, a 21 de março, damos particular destaque a este género literário escolhendo, para além da obra de Hatherly, uma antologia poética em tributo à memória de Eduardo Lourenço e a poesia completa de Roberto Bolãno. As crónicas de Helder Macedo, o segundo volume da autobiografia de Maya Angelou, o eterno regresso à mitologia grega, o mais recente romance de Miguel Almeida Fernandes e um estudo sobre bibliotecas municipais completam as nossas sugestões.

Ana Hatherly

Tisanas

A criação das Tisanas, iniciada em 1969, sempre foi considerada por Ana Hatherly (1929-2015) como um work in progress. Durante a sua vida, conheceram várias publicações, sendo um grande número de novos poemas acrescentados e redigidos ao longo dos anos. A estas pequenas narrativas, pertencentes à área do poema em prosa, Hatherly atribuiu o título de Tisanas porque considerava que eram infusões e não efusões. O termo infusões remete, como escreve Ana Marques Gastão no posfácio à presente edição, “para os quatro elementos que trespassam, de modo simbólico, a obra”, designando “um processo de imersão de folhas e raízes, sementes e plantas (terra) em água quente (fogo), que em contacto com o ar, gera vapor”. As narrativas, “muitas de tendência autobiográfica ou onírica, assentam numa forte erudição e no estudo de textos essenciais da cultura europeia e da sabedoria oriental nos domínios literário, filosófico, científico, artístico e espiritual. O estilo é de vanguarda (…) e fragmentário, e, não obstante partindo do real, sofre, por vezes, a influência da literatura e do cinema fantásticos, das ficções científica, do absurdo e do terror”. A recolha que agora se apresenta tem por base a última revista pela autora. Assírio e Alvim

Helder Macedo

Pretextos

O presente volume reúne crónicas e textos afins escritos de 2006 a 2023 e, com uma exceção, publicados no Jornal de Letras. Sobre estes magníficos Pretextos, escreve Helder Macedo, poeta, romancista, ensaísta e professor catedrático jubilado da Universidade de Londres, King’s College, onde foi titular da Cátedra Camões até 2004: “o título (…) desde logo sugere que ao falar de uma coisa estou a falar de outras”. A maioria são pretextos para falar de escritores e de pintores e partilhar os seus interesses: literatura, teatro, ópera ou política. A inteligência, a vasta cultura, os invejáveis dons de observação e análise, a fina ironia e a clareza da escrita de Helder Macedo convertem a leitura destes textos numa experiência profundamente enriquecedora. A residir há várias décadas na Inglaterra, primeiro como “um português exilado em Londres” e agora como “um português que mora em Londres”, vejamos o que diz o autor sobre essa condição: “Continuarei a ser até ao fim um escritor que só pode ser português. (…) Prefiro imaginar o Portugal que recordo e escrever sobre ele, seja o da semana passada quando lá estive seja o que já não há e que talvez conheça melhor por não estar em Portugal, por notar melhor as diferenças e as semelhanças quando lá vou. Foi também assim que percebi que não há tal coisa como a identidade nacional, que só há pessoas e circunstâncias. Mudadas as circunstâncias, as pessoas também mudam. Os portugueses ficaram o povo mais belo do mundo logo a seguir ao 25 de Abril. E olha agora, excepto alguns sobreviventes, excepto algumas mulheres mais persistentes.” Caminho

Maya Angelou

Reúnam-se em Meu Nome

Maya Angelou, figura fundamental da cultura afro-americana e dos direitos civis nos EUA, incentivada pelo seu amigo, o escritor James Baldwin, publicou o seu primeiro volume autobiográfico, Sei Porque Canta o Pássaro na Gaiola, em 1969. A obra constitui um dos mais impressionantes documentos humanos do século XX, sobre a experiência de uma mulher negra vítima de dupla discriminação, de género e de raça. É também um exemplo notável de capacidade de superação face à adversidade. Este segundo de seis volumes da sua extensa e brilhante autobiografia decorre no pós-guerra. Maya, entre a adolescência e a idade adulta, sofre sucessivos fracassos amorosos, gere um bordel que não tem capacidade de manter, regressa ao Arkansas da infância que é forçada a abandonar, vê frustrada uma carreira no exército e outra nos palcos como bailarina, acabando por se envolver no submundo de San Francisco, “caminhando à beira do abismo”. Porém, com uma “dignidade luminosa” (James Baldwin), recusa a paciente filosofia do Sul negro: “Vai com calma, tens um longo caminho pela frente e é sempre a descer”. A jovem mãe e mulher negra procura a coragem para provar ao mundo que, apesar das agressões da vida, “eu era igual ao meu orgulho e maior do que as minhas pretensões.” Antígona

A Mais Frágil da Moradas

Poemas à Memória de Eduardo Lourenço

Eduardo Lourenço foi um dos mais importantes pensadores portugueses dos últimos 100 anos. A sua reflexão e diálogo permanente com a poesia e com os poetas foi um dos eixos que marcaram fortemente a sua obra. Segundo Jorge Maximiano e Nuno Júdice, responsáveis pela organização e edição do presente tributo, “a criação poética foi para ele, na esteira dos grandes pensadores e poetas como Höderlin, não só a arte suprema como também um espaço de liberdade na linguagem, uma vez que na sua perspectiva ‘só a palavra poética é libertação do mundo’”. Este volume, que celebra o seu centenário de nascimento, reúne poemas de Luís de Camões, Antero de Quental, Fernando Pinto do Amaral, Hélia Correia, Jorge Reis-Sá, Luís Quintais, Nuno Júdice ou Tatiana Faia. Vários destes poemas são dedicados a Eduardo Lourenço, caso de Ensaio 1, de António Carlos Cortez, composto após a intervenção do grande pensador num congresso dedicado a Carlos de Oliveira: “(…) Falou da dimensão trágica do homem / da humanidade feita livro/ do livro feito poema e do sentido / que a vida da poesia pode ter / se o canto ondeando torna vivo / o confronto com a esfinge até doer”. Guerra & Paz

Ana María Shua

Deuses e Heróis da Mitologia Grega

“Nos desenhos animados, nos filmes de aventuras, nas estatuas e nos edifícios, os mitos gregos e romanos estão presentes e saúdam-nos (ou perseguem-nos) todos os dias”, escreve Ana María Shua. Por tal razão, a autora, nascida em 1951, em Buenos Aires, sentiu uma grande vontade de ler e estudar esses mitos para os voltar a contar “à maneira do século XXI”. Este livro é o resultado da sua paixão pela mitologia greco-romana, pelos seus heróis e deuses, “mas também pelos seus monstros, com as sua múltiplas cabeças, o seu bafo de fogo, os seus cabelos de serpente”. Figuras que considera “estranhas e maravilhosas”, mas simultaneamente “familiares e próximas”. A obra estrutura-se em quatro partes: Assim começou o Universo; Histórias de Heróis e Heroínas (que inclui as aventuras de Perseu, Herácles, Jasão e Teseu); A Guerra de Troia; Os Deuses do Olimpo. De uma forma acessível, mas cuidada, resume os grandes mitos da Antiguidade, fábulas exemplares essenciais para a compreensão dos grandes acontecimentos históricos e de muita da literatura e arte contemporâneas. A edição de Deuses e Heróis da Mitologia Grega surge enriquecida pelas ilustrações de João Moreno. Fábula

Manuel Carvalho Coutinho

A Biblioteca, uma segunda casa

“Quem não lê, não quer saber; quem não quer saber, quer errar”, escreveu Padre António Vieira, o “Imperador da Língua Portuguesa” como lhe chamou Fernando Pessoa. Mas como ler sem poder de compra ou sem a possibilidade de acesso direto aos livros? Em Portugal, 303 bibliotecas municipais, integradas numa rede nacional criada em 1987, procuram cumprir o desígnio estatal de promoção da leitura junto de todos, das crianças aos idosos, de forma aberta e inclusiva. Este livro, de autoria de Manuel Carvalho Coutinho, investigador do Centro de Estudos de Comunicação e Cultura da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, retrata 21 destas bibliotecas fora da cidade de Lisboa, no continente e nas ilhas.  Procura reproduzir a experiência de observação do seu funcionamento quotidiano e os testemunhos de bibliotecários, técnicos e leitores. Ao longo das viagens que fez no âmbito desta obra, o autor concluiu que “uma boa Biblioteca nunca existe verdadeiramente, pois há sempre novos desafios no horizonte e mais trabalho para desenvolver. (…) é um projecto em constante movimento e crescimento, dito de sucessos e insucessos, trabalho e dedicação. (…) As bibliotecas são sobretudo espaços feitos para nós e que existem para nós. O conhecimento e a cultura que lá se encontra espera-nos.” Fundação Francisco Manuel dos Santos

Roberto Bolaño

Poesia Completa

“Neste país de latifundiários, a literatura é uma extravagância e saber ler não é nenhum mérito”. Desta forma se referiu ao Chile, seu país de origem, o escritor Roberto Bolaño (1953-2003) no romance Nocturno Chileno. Romancista e poeta, impôs-se como um dos mais importantes autores latino-americanos do nosso tempo. Prisioneiro político do regime de Pinochet, refugiou-se no final dos anos 70 em Barcelona. Bolaño cultivava a poesia como uma forma de arte superior: “A poesia é mais corajosa do que ninguém”, escreveu. Para ele, poesia e prosa não eram duas, mas muitas coisas sempre em movimento associando registos completamente diferentes: poemas escritos em prosa, histórias em verso e outros fragmentos que dificilmente se podem catalogar num ou noutro campo. Muitos dos seus poemas são profundamente autobiográficos, repletos de poetas e artistas famintos, errantes, solitários, magoados, mergulhados na noite, à beira da penúria. Como nos três versos de A ética, tão representativos do autor: “Estranho amoroso mundo: suicídios e assassinatos/ não existe dama magnética, Gaspar, mas Medo/ e a velocidade necessária daquele que não que sobreviver.” Quetzal

Miguel Almeida Fernandes

O Diplomata

Numa altura em que as guerras Rússia-Ucrânia e Israel-Palestina estão na ordem do dia, este romance de estreia do jornalista Miguel Almeida Fernandes (n. 1954) não podia ser mais atual, apesar do seu início remontar aos anos de 1960. Filho de uma família abastada, Diogo Meneses sempre ambicionou uma carreira diplomática, mas “debatia-se com uma grande contradição. Ser diplomata era ser funcionário público e servir um regime que detestava, colocava-lhe enormes problemas de consciência”. Com o 25 de Abril, a situação política em Portugal mudou e Diogo ingressa no Gabinete Estratégico do Ministério dos Negócios Estrangeiros, tendo acompanhado missões diplomáticas a países como a Jordânia, Moçambique, Hungria ou Rússia, onde vive intensamente o desmoronar do império soviético. A par da sua carreira, em muitos momentos marcada pelo perigo – Diogo chega mesmo a ser acusado de conspiração pelo KGB – e pelos habituais jogos de bastidores e trocas de favores entre países com interesses em comum, Meneses tenta manter uma relação amorosa com Helena, que conhece desde a faculdade, e que outrora sonhou ser professora, mas que atualmente é modelo em Roma. Quando os dois começam a falar em casamento e Helena pondera a carreira universitária, Diogo é nomeado embaixador e o futuro dos dois mantém-se incerto e em aberto. [Sara Simões] Casa das Letras