sugestão
Os livros de outubro
Sete propostas de leitura para o outono
Com a chegada do outono, os dias tornam-se mais frios e curtos. O recolhimento em casa propícia o reencontro com os livros. A Agenda Cultural de Lisboa sugere sete edições recentes, incluindo a de alguns clássicos como A Mãe de Gorki e Bouvard e Pécuchet de Flaubert, para o retomar das suas leituras outonais.
Gustave Flaubert
Bouvard e Pécuchet
Dividido entre uma profunda necessidade de lirismo e o desejo de restituir “quase materialmente” o que via, Gustave Flaubert (1821-1880) encontrou no trabalho sobre a escrita, em busca da perfeição formal do estilo, a sua unidade enquanto artista, fascinado pelo verdadeiro e pelo belo. Nesta obra-prima satírica inacabada, o genial escritor empreende mais uma dura análise da vida do século XIX com um romance que pretendia ser “uma enciclopédia da estupidez humana”, como declarou numa carta dirigida a George Sand. Bouvard e Pécuchet reformam-se e começam uma nova vida no campo, dedicando-se, sucessivamente, às várias áreas do saber – agronomia, medicina, química, literatura, geologia, política, filosofia -, sempre com resultados frustrados. Retrato hilariante da fragilidade da sabedoria convencional, denúncia implacável da arrogância do conhecimento superficial e crítica mordaz à vacuidade da vida intelectual francesa. Jorge Luis Borges comparou Bouvard e Pécuchet com as parábolas satíricas de Jonathan Swift e de Voltaire, considerando que a novela antecipava o absurdo de Franz Kafka. E-Primatur
Fernando Namora
Jornal Sem Data
Fernando Namora nasce em Condeixa-a-Nova a 15 de abril de 1919 e morre em Lisboa, no dia 31 de janeiro de 1989. Licenciado em Medicina pela Universidade de Coimbra em 1942, o jovem médico exerce a sua profissão de aldeia em aldeia, nas regiões da Beira Baixa e do Alentejo, antes de se instalar em Lisboa como médico assistente do Instituto Português de Oncologia. Esta experiência inspiraria alguns dos seus romances mais famosos como Retalhos da Vida de um Médico ou Domingo à Tarde. Na mudança para Lisboa, irá afastar-se do médico “para que o escritor pudesse persistir”. Homem do campo e da cidade, conhecedor de diferentes realidades sociais e dos dramas humanos, o escritor, dotado de uma profunda capacidade de análise psicológica a par de uma grande sensibilidade da linguagem poética, contribuiu para o amadurecimento estético do neorealismo e aproximou-se do existencialismo. Jornal sem Data é um notável caderno no qual o autor anotou os mais variados tipos de textos: crítica literária, política, pensamentos e memórias. “A literatura é um processo de libertação e, por conseguinte, aspira à liberdade. (…) Homem livre, pois, o escritor. (…) Tão necessitado de o ser, que nem sequer pode estar de acordo com certas situações para que ardorosamente contribuiu: seja uma sociedade burguesa, seja uma sociedade proletária, ele sempre encontrará razões para a sua insubmissão e para o seu inconformismo.” Caminho
Richard Russo
Um Homem a Meio da Vida
William Henry Deveraux, Jr, tem 50 anos e é diretor interino do departamento de Inglês da Universidade Estadual de Podunk, na cintura industrial da Pensilvânia. Este romance narra os meandros da vida universitária a que está sujeito, numa fase em que a instituição enfrenta pesados cortes orçamentais e despedimentos: rivalidades, traições, intrigas, vaidades e favoritismos. A narrativa segue as peripécias do protagonista durante uma semana particularmente azarada. Quando uma equipa de televisão filma uma reportagem junto ao lago da universidade, William agarra num ganso pelo pescoço e, sem pensar nas consequências, anuncia que mata “um pato” por dia até conseguir orçamento para o seu departamento. A atitude enfurece os colegas que se reúnem com o objetivo de o destituir do cargo e desencadeia a raiva das ligas de proteção dos animais. Nesta obra se lê que o “humor é um mau substituto da verdade”. Contudo, para Richard Russo, o humor afigura-se como o melhor processo de narrar uma verdade muito séria: a realidade de um país que não se interessa pelo ensino superior, em que a prosperidade da classe média pertence ao passado e em que as famílias enfrentam a degradação do nível de vida, o endividamento e o pavor de perder os empregos. Relógio d’Água
Salman Rushdie
Linguagens da Verdade
“Antes de haver livros, havia histórias”, escreve Salman Rushdie em Linguagens da Verdade, obra ensaística onde explora a natureza do ato de narrar como uma necessidade humana. O presente volume reúne textos de não-ficção – ensaios, críticas e discursos – escritos entre 2003 e 2020 que mergulham o leitor numa ampla variedade de assuntos que, em grande parte, se focam na relação do autor com a palavra escrita. Rushdie analisa o que as obras de escritores de Shakespeare e Cervantes a Harold Pinter, Eudora Welty e Philip Roth significam para ele, tanto na página impressa como a nível pessoal. Também a pintura de Francesco Clemente ou de Kara Walker lhe merecem análises perspicazes e inspiradoras. Simultaneamente, procura aprofundar a natureza da “verdade”, celebrando a vibrante maleabilidade da linguagem e das forças criativas que podem unir arte e vida, refletindo sobre temas como a migração, o multiculturalismo, e a censura. Revisitando o tema da natureza da amizade e do amor, rejeita a afirmação de Billy Cristal no filme When Harry Met Sally: “Homens e mulheres não podem ser amigos porque a questão do sexo está sempre no caminho”. Dá como exemplo a sua amizade com Carrie Fisher: “Foi uma amizade. Nada mais. E isso foi bastante.” Dom Quixote
Máximo Gorki
A Mãe
A obra de Máximo Gorki (1868-1936) centra-se no submundo russo. O escritor descreveu de forma vibrante os personagens que integravam as classes excluídas: operários, vagabundos, prostitutas, gente humilde, homens e mulheres do povo. Os autores realistas e naturalistas já tinham incorporado estes setores sociais na literatura, mas sem o sentido de autenticidade de Gorki que conhecia esse universo por dentro – ele próprio nascera na extrema pobreza – sabendo captar o que havia de mais profundo na alma do povo russo. A Mãe, romance publicado em 1907, narra o processo do esclarecimento dialético de uma mulher russa do início do século XX, e da sua transformação ideológica. A pobreza extrema, a violência czarista e a luta política do filho e dos seus companheiros de fábrica em prol de condições económicas mais justas, tornam-na consciente de um novo papel social que a liberta da submissão a que se encontrava sujeita pela ordem arcaica. A obra, que se encontrava esgotada em Portugal, faz parte da coleção Os Livros da Minha Vida do Clube do Autor. A presente edição deste clássico da literatura universal conta com tradução de Dina Antunes e prefácio de José Milhazes. Clube do Autor
bell hooks
Tudo do Amor
“Foi a sua ausência [do amor] que me fez perceber o quão ele é importante”, escreve bell hooks sobre a sua infância traumática. O trabalho de Gloria Jean Watkins (1952-2021), conhecida pelo pseudónimo bell hooks, incide na intersecção da raça, da classe social e do género, e nos modos como estas categorias produzem e perpetuam sistemas de opressão e dominação, reforçando a estrutura capitalista patriarcal. Tudo do Amor, ensaio marcadamente pessoal, repensa o significado do amor na cultura ocidental e propõe uma visão do mundo sob uma nova ética amorosa, procurando desconstruir lugares-comuns e representações que dissimulam relações de poder e de dominação. Contrariando o pensamento corrente, que tantas vezes julga o amor como fraqueza ou atributo do que não é racional, bell hooks defende que, mais do que um sentimento, o amor é uma ação poderosa, capaz de combater o cinismo, o materialismo e a ganância que norteiam as sociedades contemporâneas. Na cozinha de sua casa, a autora tem pendurada uma foto de um grafiti que viu nas paredes de um estaleiro de obras com a seguinte frase, pintada em cores vivas: “A procura pelo amor continua mesmo perante as maiores improbabilidades.” Orfeu Negro
Nadejda Mandelstam
Contra Toda a Esperança
Nadejda Mandelstam (1899–1980) ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Kiev, que cedo abandonou para se dedicar à pintura. Em 1919, conheceu Ossip Mandelstam, com quem casou em 1922, e de quem se tornou a primeira ouvinte, conselheira e crítica literária. Acompanhou o marido durante os três anos de exílio (1934–1937) a que foi sentenciado, e desde então consagrou a sua vida a uma missão: a preservação da obra do poeta. Na década de 1960 conseguiu enviar clandestinamente o arquivo de Mandelstam para ser publicado no estrangeiro. O livro de memórias de Nadejda abre com a frase: “Depois de dar uma bofetada a Aleksei Tolstói, O. M. regressou imediatamente a Moscovo”. O motivo da bofetada nunca será explicado. Dois dias depois do incidente, agentes da polícia secreta batem à porta dos Mandelstam e levam o poeta. Ao longo da obra procura entender a razão dessa prisão e centra a narrativa nos quatro anos que medeiam a primeira detenção, na noite de maio de 1934, e a sua morte, ou os rumores sobre ela, num campo de trânsito próximo de Vladivostok, algures no Inverno de 1938. As memórias constituem um valioso itinerário literário e biográfico dos últimos anos de vida de um dos maiores poetas do século XX e uma fonte imprescindível para sucessivas gerações de investigadores da sua obra e também da poesia modernista russa. Imprensa da Universidade de Lisboa