Um lugar para ser quem se é

"Adam" no Teatro da Politécnica

Um lugar para ser quem se é

A odisseia verídica de Adam Kashmiry, um homem transgénero que abandonou o Egito natal e se radicou na Escócia, inspirou a dramaturga escocesa Frances Poet em Adam. A peça, estreada em 2017 no Festival de Edimburgo, é agora levada a cena pelos Artistas Unidos que, pela primeira vez, apresentam um espetáculo protagonizado por artistas trans, no caso, Tomás de Almeida e Eduarda Arryaga.

Para Andreia Bento e Nuno Gonçalo Rodrigues, atores que assinam a quatro mãos a encenação de Adam, teria sido possível a ambos acumular o trabalho de encenar com o de interpretar a multiplicidade de personagens que compõem o espetáculo. Mas, “dada a temática da peça, achámos que o ideal seria ter em palco atores da comunidade trans”, e, desse modo, “promover a representatividade de uma comunidade que ainda se depara com situações de exclusão e de extrema violência”, refere Andreia Bento.

Escrita por Frances Poet, Adam estreou no Festival de Edimburgo em 2017, interpretada pelo próprio Adam Kashmiry, um ator trans nascido no Egito que, anos antes, procurara asilo na Escócia de modo a conseguir “encontrar um lugar onde pudesse existir”. Um lugar que, como afirma o ator Tomás de Almeida, que interpreta na peça o Adam masculino, não é somente geográfico, “mas identitário”.

Identificado à nascença com o género feminino, Adam Kashmiry depressa se apercebe que estava a crescer no corpo errado. Perante a sua própria incompreensão, que se revelará insustentável no futuro, e a intolerância com que sistematicamente se confronta da parte da família e da sociedade, chegado à adolescência Adam decide rumar à Europa em busca de um lugar onde se possa cumprir como pessoa.

Depois de múltiplas atribulações e angústias, entra no Reino Unido e fixa-se na cidade escocesa de Glasgow. Mas, outra batalha se lhe impõe: para requerer asilo, há barreiras burocráticas a vencer de modo a garantir os cuidados médicos que lhe permitam provar que é um homem trans. Será a agonia vivida por Adam ao longo dos cerca de 700 dias em que se manteve confinado num pequeno quarto em Glasgow, enquanto espera pelas decisões das autoridades, que servirá de cenário ao texto de Frances Poet.

Esse espaço de confinamento é como que um mergulho na cabeça de Adam e nas suas conflitualidades latentes. Por um lado, aquelas que esgrime com as vozes do passado, repletas de incompreensão e de falta de compaixão, que ecoam do Egito natal. Por outro, aquelas que se escutam num presente que lhe traz a frustração e a desilusão com o país onde pretende encontrar o seu lugar.

Contudo, o epicentro do drama está no conflito identitário entre o Adam feminino (que aqui é interpretado por Eduarda Arryaga) e o Adam masculino. Uma dualidade que Poet estrutura com particular engenho e que, nas palavras da co-encenadora Andreia Bento, justificam este namoro antigo com um texto que descobriu em 2019 e que, desde logo, revelou “um enorme potencial artístico e emocional.”

Foram as qualidades do texto e “a visão sobre o tema da identidade” que acabaram também por seduzir Nuno Gonçalo Rodrigues, que não só co-encena como assina a tradução. “Enquanto lia o texto comecei a traduzir mentalmente e quando dei conta tinha umas 20 páginas prontas.”

O palco inclusivo dos Artistas Unidos

Ao longo de um processo de criação “muito fluído”, os Artistas Unidos decidiram que seria importante contar com pessoas da comunidade trans na criação do espetáculo. “Até aqui, os Artistas Unidos foram sempre um palco cisgénero. Daí Adam ser um espetáculo histórico para a companhia”, sublinham os encenadores, lembrando que, para lá dos atores, Adam conta com trabalho em vídeo da artista dominicana não binária Marie Jiménez e a consultoria do próprio Kashmiry e da ativista trans Dani Bento, da Associação GRIT e da ILGA Portugal.

De um open call aberto a artistas trans, os encenadores selecionaram Eduarda Arryaga e Tomás de Almeida, ambos atores formados pela Escola Superior de Teatro e Cinema, que sublinham a relevância “pessoal e para a comunidade trans de serem protagonistas num espetáculo de uma das mais importantes companhias de teatro portuguesas.”

Quanto à peça, embora exista um caráter biográfico explícito (sem comprometer as afirmações da autora e do próprio Adam Kashmiry a assumirem que Adam vai para além de um percurso exclusivamente pessoal), os atores sublinham “a importância de estas histórias começarem a ganhar palco”. Eduarda Arryaga, que fez o “percurso” inverso ao da personagem da peça, enfatiza que, por mais díspar que tenha sido a sua experiência, “é impossível a uma pessoa trans não se identificar” com muito daquilo que está na peça. “Partilhamos muita daquela dor, daquela angústia de saber que é preciso transformar o nosso corpo para que nos aceitemos, para que nos amemos e, consequentemente, para que os outros nos aceitem e possam amar também”.

Com estreia marcada para 8 de junho (numa sessão de entrada livre, sujeita à lotação da sala e a confirmação prévia), Adam está em cena até 24 de junho, de terça a sábado, no Teatro da Politécnica.