O escritor que esqueceu como escrever

'Sombras Brancas', o filme de Fernando Vendrell sobre José Cardoso Pires, estreia nos cinemas

O escritor que esqueceu como escrever

O realizador Fernando Vendrell parte do livro biográfico De profundis, valsa lenta, de José Cardoso Pires, e realiza um filme que acompanha o processo de recuperação do escritor após sofrer um AVC, revelando ao mesmo tempo a sua história familiar e de vida. Memória, ficção e imaginário cruzam-se, dando origem a um filme que Vendrell considera um "compacto biográfico com uma leitura poética."

Desde 1992, ano em que fundou a produtora David & Golias, Fernando Vendrell é realizador e produtor. Porém, o seu percurso no cinema iniciou-se em 1981, tendo feito trabalhos como fotógrafo de cena, diretor de produção e assistente de realização.

Para além do trabalho no cinema, assinou várias séries para televisão, das quais se destaca 3 Mulheres, que parte das biografias da poetisa Natália Correia, da editora Snu Abecassis e da jornalista Vera Lagoa. As suas obras oferecem uma perspetiva intimista das personagens que retrata, sejam elas fictícias ou reais.

Sombras Brancas é o segundo filme do cineasta tendo por base uma obra literária. O primeiro foi Aparição (2018), adaptado do romance homónimo de Vergílio Ferreira. No entanto, Vendrell confessa que em 2012, ainda antes de Aparição, esta segunda adaptação cinematográfica já tinha começado a tomar forma.

“Através de uma conversa entre amigos onde se discutia a possibilidade de adaptação de obras literárias para cinema, ou escritores que tivessem uma escrita cinematográfica, alguém referiu o Cardoso Pires. De uma forma automática, e conhecendo eu a sua obra, afirmei que seria interessante adaptar o De profundis, Valsa Lenta. Foi uma reação instintiva, que se prendia com uma situação vivida pelo escritor, uma situação que era maior do que a própria vida, maior do que uma obra literária. Era uma experiência radical em termos humanos, e foi isso que me impulsionou”, conta.

Aos 71 anos, José Cardoso Pires sofre um acidente vascular cerebral, perdendo a capacidade de se relacionar com o mundo. Apesar de ser escritor, não reconhece as palavras e não consegue articulá-las com nexo. Lugares, situações e personagens fundem-se, misturando vida real, ficção e memória. No hemisfério direito do seu cérebro surgem personagens surreais e fantásticas que lhe enviam sinais para que se volte a encontrar. Através do hemisfério esquerdo, no “lobo da realidade”, esperançados que ele se reconheça novamente, familiares, médicos, pessoal hospitalar e doentes, procuram trazê-lo para a realidade. Incapaz de comunicar, Cardoso Pires contempla, apático, a consternação de familiares e amigos.

Para o realizador, “um escritor sofrer um AVC que lhe afeta a parte do cérebro que controla a escrita e a linguagem, colocando-o frente ao desconhecido, é uma situação completamente anormal. Posteriormente, depois de regressar à realidade e perante a sua capacidade de superação, Cardoso Pires é desafiado pelo cirurgião João Lobo Antunes, a reportar as suas memórias. O livro que daí resultou é uma obra única do ponto de vista literário e humano, mas também um livro que está classificado com interesse científico.”

Para a realização do filme, Vendrell com o coargumentista Rui Cardoso Martins pesquisaram a obra de Cardoso Pires e elencaram-na para a escrita do argumento cinematográfico. O contributo da família do escritor foi essencial, trazendo novas questões e contextos para o projeto.

“Quando falei com a família e pedi para fazer o filme deram-me carta aberta. Eu e o Rui precisávamos de saber mais sobre o processo hospitalar, então as filhas do Cardoso Pires, Rita e Ana Cardoso Pires, que já conhecia, disseram-nos para falarmos com a mãe, a Maria Edite Pereira, até porque foi ela que esteve sempre ao lado do escritor no hospital, acompanhando todo o processo. Quando nos reunimos com a Edite, ela contou-nos como conheceu o José, revelando episódios do início da relação, nomeadamente um passeio de barco no Campo Grande onde ele ficou isolado no meio do lago”. Esta imagem transmitida pela companheira do escritor surgiu ao realizador como uma “quase metáfora, uma situação visual do que lhe aconteceria no futuro, ou seja, o rapaz sozinho no meio de um lago.”

“Percebemos que, a par do que acontece na cabeça do escritor tínhamos também que abordar a carreira dele e a história de amor entre o casal”, conclui.

Para o realizador o filme é “uma biografia invulgar do escritor, referenciando muito o universo da escrita, até o universo visual, as amizades, as dificuldades que teve, nomeadamente com a censura”. Acima de tudo, procura ser “um pórtico” que leve o espectador à “cabeça do escritor, onde memória, ficção e imaginário se misturam.”

E o ideal será experienciá-lo no grande ecrã, na sala de cinema, que o realizador considera “um espaço criativo solitário, onde o espectador contemporiza a sua memória com impressões e vivências inexplicáveis. Também o meu cinema plasma sensações e emoções por mim vividas e remete dúvidas e questões que procuram resposta.”

Sombras Brancas conta, nos papéis de Cardoso Pires e Maria Edite Pereira, com os atores Rui Morisson e Natália Luiza, sendo que, enquanto jovens, o casal é interpretado por Ana Lopes e Rafael Gomes. Do elenco fazem ainda parte, entre outros, Soraia Chaves, Maria João Bastos, Luís Mascarenhas, Gonçalo Waddington, Rogério Samora e Margarida Moreira.