Os livros de abril

Sete viagens sem sair do lugar

Os livros de abril

“Os livros são como barcos, levam-nos de quando em vez onde mais precisamos e com a excelente proeza de não termos de sair do lugar”, escreve Paulo Moreiras na novela picaresca A Vida Airada de Dom Perdigote. Este mês, para além desta, sugerimos seis outras leituras: a poesia de Paul Verlaine, os contos de Camilo Castelo Branco, uma narrativa de contornos surreais de Roland Topor, os Haikus de Gonçalo M. Tavares, uma novela de Javier Marias e uma obra da escritora científica Rachel Carson.

Camilo Castelo Branco

Contos e Novelas – Vol. III

“Picado de génio e das bexigas”, lê-se como legenda da caricatura de Camilo Castelo Branco no Álbum das Glórias de Rafael Bordalo Pinheiro. O génio do grande escritor deu origem a uma obra torrencial com duas tendências essenciais: a novela satírica de costumes e a novela passional que culminam respetivamente na Queda de um Anjo e no Amor de Perdição. As bexigas que lhe desfeavam o rosto não impediram uma acidentada vida passional que foi a mais importante fonte da narrativa camiliana. A editora E-Primatur dedica quatro volumes, com organização, introdução e notas de Hugo Pinto Santos, à arte camiliana do conto. O tomo atual, terceiro na integral da ficção breve do autor, fixa-se entre as datas de 1872 e 1876, e concentra-se essencialmente em dois grandes conjuntos de narrativas: Quatro Horas Inocentes e Novelas do Minho. Na História da Literatura Portuguesa, Óscar Lopes e António José Saraiva consideram Camilo “o nosso grande percursor da melhor técnica contística” e destacam os seguintes títulos: Maria Moisés, História de uma Porta, O Cego de Landim ou A Morgada de Romariz. Os dois últimos integram o presente volume. E-Primatur

Paul Verlaine

Romanças sem Palavras

Em 1871, Paul Verlaine conhece Arthur Rimbaud e, entre ambos, inicia-se uma ligação vertiginosa feita de separações que oscila entre a ternura e a crueldade e a fidelidade e a traição. Em 1873, Verlaine atinge Rimbaud na mão esquerda com um tiro de revólver. O poeta é detido e condenado a dois anos de prisão. Do cárcere de Mons, Verlaine acompanha, como pode, o processo de publicação de Romanças sem Palavras. Após o escândalo, banido dos meios literários parisienses, viu o seu livro ignorado sem remorso. Exemplar de experimentação e inovação, a obra manifesta, segundo Manuel S. Fonseca, “uma requintada oficina poética que exibe uma concisão elíptica, bastando-se com a expressão mínima, como se tudo pudesse ser abreviado, a palavra, a sintaxe, talvez a vida”. Romanças sem Palavras integra, de pleno direito, a coleção Livros Negros que pretende acolher obras malditas ou proibidas e textos polémicos controversos ou escandalosos, de indesmentível qualidade literária. Os seus versos celebram “Antes tabernas / Que o doce lar” e cantam a marginalidade das “tascas luzentes”, das “choças imundas e negras”, dos “cheiros sinistros” e das “terras brutais”. A tradução é de João Moita. Guerra & Paz

Paulo Moreiras

A Vida Airada de Dom Perdigote

Tanganho Perdigão Fogaça, o ‘Dom Perdigote’, narra neste livro de memórias “um tanto do que vivi, um pouco do que senti e o muito que sofri”. O nosso herói pretende com a relação das suas façanhas “dar alegria e gosto ao povo, uma vez que a comédia é uma imitação da vida, espelho de costumes e imagem da verdade”. Nascido no ano da morte de Camões, nas andanças do destino, entre Portugal e Espanha, salva a vida a El Greco, luta em duelo com Quevedo, conhece Cervantes e livra um certo dramaturgo inglês, um tal de Guilliam Jaquespêra, de uma perigosa emboscada. Paulo Moreiras, celebrado por Miguel Real pelo seu “domínio admirável da língua portuguesa”, interessa-se pela novela picaresca desde que leu Vida e Obras de Dom Gibão, de João Palma Ferreira, em 1998. Em Dom Perdigote rescreve e reinterpreta frases de outros escritores, especialmente do Siglo de Oro espanhol (Cervantes, Lope de Veja, Quevedo, Fernando de Rojas, entre outros), produzindo um efeito singular entre a “biblioteca sentimental” e o jogo intertextual. Com as aventuras e desventuras deste herói pícaro, oferece ao leitor um brilhante exercício de estilo que é, simultaneamente, um divertimento erudito que o torna mais sabedor “sobre a fábrica do universo e a mecânica dos homens.” Casa das Letras

Rachel Carson

Primavera Silenciosa

No final da década de 1950, a bióloga marinha Rachel Carson (1907–1964) era considerada a escritora científica mais respeitada da América. O seu percurso começou no Colégio para Mulheres da Pennsylvania. Como bolseira, estudou no Laboratório Biológico Woods Hole e na Universidade Johns Hopkins, onde completou o mestrado em zoologia em 1932. Sem meios económicos para continuar os estudos, trabalhou como assistente de laboratório na Escola de Saúde Pública, onde adquiriu conhecimentos de genética experimental. Recebeu várias distinções e prémios, entre os quais o Prémio Nacional do Livro. A título póstumo, foi-lhe atribuída a Medalha Presidencial da Liberdade. Primavera Silenciosa (1962) é uma obra que demonstra os malefícios da utilização de pesticidas químicos. A investigação pioneira de Carson provou que o uso em grande escala de DDT e outros pesticidas agrícolas tinha um efeito devastador para a fauna e a flora, e a existência de uma relação direta entre vários tipos de cancro nos seres humanos e a exposição a estes químicos. Um livro fundamental que ajudou a repensar a relação entre ser humano e natureza, promoveu um debate sobre como atingir a justiça ambiental, e uma reflexão a propósito da indissociabilidade entre saúde pública e ambiente. Universidade de Lisboa

Gonçalo M. Tavares

Tempestade e Motor – 100 Haikus

Gonçalo M. Tavares publica dois novos livros: Breves Notas sobre o Oriente e Tempestade e Motor. Ambos têm o Oriente como inspiração: o primeiro foi em parte escrito no Japão (Tóquio e Quioto) e o segundo é dedicado a arte poética do haiku. O haiku é formalmente, um poema japonês de três versos composto de um total de dezassete silabas (5-7-5). Este terceto é, normalmente, um veículo poético transportador de duas imagens contrastantes entre si. Conciso e poderoso, evocativo e imagético, o haiku foca-se na natureza que serve de espelho ao mundo interior do poeta, estabelecendo um jogo de reflexos entre estados de alma e observações sensíveis. No Ocidente o haiku tem sido quase sempre entendido em função da sua espiritualidade ligada ao budismo zen. Roland Barthes considerou-o como o ramo literário da aventura espiritual do zen. Porém, o filósofo coreano Byung-Chul Han salienta que “o haiku é mais um jogo que diverte do que uma aventura espiritual ou linguística”. Esta última vertente é mais notória nestas aproximações de Gonçalo M. Tavares ao género (“uma vizinhança apenas, embora mantendo o nome”), tintadas de humor negro: “o relâmpago / aprendeu sons / com a guerra”. Relógio D’Água

Roland Topor

O Inquilino Quimérico

O romance O Inquilino Quimérico, clássico do humor negro, com contornos surreais, aborda os temas da alienação da vida nas grandes cidades, da falta de laços de empatia e humanidade entre os seus habitantes e do consequente processo de massificação que não reconhece o indivíduo. Trelkovsky, um jovem de 30 anos, honesto, bem-educado e discreto, que detesta complicações, é alvo de uma conspiração movida pelo ódio dos seus vizinhos. Acossado, e sem defesas, entra num processo inexorável de insanidade, despersonalização e metamorfose. Adaptado ao cinema e protagonizado por Roman Polanski, em 1976, com um elenco de luxo que incluía Isabelle Adjani, Melvyn Douglas, Jo Van Fleet, Shelley Winters e Lila Kedrova, O Inquilino constituiu o último filme da Trilogia do Apartamento após Repulsa e A Semente do Diabo. A versão cinematográfica, mais confinada ao apartamento do que a obra literária em que se inspira, ganha em ambiência claustrofóbica o que perde em dimensão alucinatória. É, justamente, devido à sua visão singular, cruel, grotesca e demencial, que esta história “de um homem que enlouquece devido à hostilidade do mundo que o rodeia” merece ser lida. Antígona

Javier Marías

O Homem Sentimental

O Homem Sentimental é uma obra que tem a complexidade de um romance e a extensão de uma novela (menos de 120 páginas). Quer o texto principal, como aquele que tudo indica que seja um posfácio, também da autoria de Javier Marías, indicam as datas da sua conclusão (respetivamente maio de 1986 e março do ano seguinte). Diz-nos Marías que “O Homem Sentimental é uma história de amor em que o amor não se vê nem vive, antes se anuncia e recorda.” Apesar do escritor cultivar uma certa ambiguidade relativamente aos factos narrados, somos levados a crer que a realidade do relato escrito do cantor de ópera León de Nápoles, deixa de corresponder ao que o mesmo vivenciara fora dos seus sonhos a partir do encontro num trajeto de comboio com a mulher por quem se apaixonará platonicamente, e que viajava na companhia do marido e de um segundo homem. Marías também refere no mesmo posfácio que “viajando de comboio de Milão para Veneza, tive à minha frente, durante três horas, uma mulher que correspondia exatamente à descrição física e moral” da personagem feminina, Natalia Manur. Não é difícil de suspeitar que o homem sentimental deste livro seja, em última análise, o próprio autor. [Ricardo Gross] Alfaguara